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    As lembranças da garota de recados de Abujamra e Antunes Filho

    MICHELLE FERREIRA

    07/08/2016 02h02

    São Paulo, 2008

    Não faz muito tempo, eu sonhei com Antônio Abujamra. Foi um daqueles sonhos hiper-realistas, com cheiro, textura e calor. Ele me pegou pelo ombro, como já tinha feito antes, e eu caí no choro.

    Conheci Abujamra em 2008, no projeto Geografia da Palavra, na Funarte, onde ele dirigiria a peça "Os Possessos", adaptação de Albert Camus para o livro de Dostoiévski. Havia gente do Brasil inteiro, entre bolsistas de atuação, direção, iluminação, cenografia e produção. O coordenador era Abu e ele nos encantava, nos ensinava e nos massacrava. Eu, que estava lá para aprender com ele como dirigir uma peça, fui alçada ao palco. Meu objetivo: ser perfeita para não ser alvejada. Ele dizia: "Anda bonito!", e lá ia eu, tentando andar bonito.

    Um dia, no CPT (Centro de Pesquisa Teatral), comentei com Antunes Filho que estava trabalhando com o Abujamra. "E como é que está aquele gordo? Diga que eu perguntei." Eu, que no início tinha medo da figura contundente de Abu, tomei coragem e me aproximei pela primeira vez. Fiquei nervosa como uma menina apaixonada. Para mim, ele era o Ravengar, era o provocador da TV Cultura e, para além disso, era o homem que comportava todos os sonhos do mundo. Como eu o admirava! Respirei fundo e contei que era dramaturga e que estava com Antunes em seu Núcleo de Dramaturgia. "E você é uma boa autora? Me traga uma de suas peças, quero ler. Ah, e fale para aquele magro que ele é um grande filho da... não. Apenas diga que eu estou com saudades dele."

    No dia seguinte, entreguei a ele minha peça "Urubu Comum", cuidadosamente encadernada. Se eu tivesse coragem, teria desenhado corações. Mas não o fiz. Escrevi uma dedicatória pedindo para ele ter paciência com o meu texto e me identifiquei como "endoscopia" (tinha faltado num ensaio por causa desse exame). Ele pegou o texto e agradeceu.

    Acervo pessoal
    Abujamra (ao centro) e a equipe do projeto Geografia da Palavra; Michelle é a penúltima à dir., à frente
    Abujamra (ao centro) e a equipe do projeto Geografia da Palavra; Michelle é a penúltima à dir., à frente

    Para minha surpresa, Abujamra chega ao ensaio seguinte falando alto, batendo com o texto na minha cabeça e me pegando pelo ombro: "Você é uma autora de personagens femininos! Adorei a Senhora G. Que mulher!". Sim, ele tinha lido e parecia ter gostado.

    Na sexta-feira seguinte, como de praxe, encontrei Antunes: "Abujamra leu 'Urubu Comum' e disse que eu escrevo personagens femininos. E masculinos, Antunes? Você acha que eu não entendo a cabeça dos homens?". Ele não deu nenhuma importância para o meu comentário carente de aprovação e apenas disparou: "Diga ao gordo que ele tinha que fazer o Professor F.; sempre achei a cara dele". Professor F. era o marido da Senhora G., um homem com chagas que vive dentro de uma banheira, no meio da sala de seu apartamento.

    "Abu, o Antunes disse que você deveria fazer a minha peça." Ficcionalizei, para gerar impacto. Ele, ocupado, levantou os olhos e respondeu: "O magro disse isso, é? Se ele for dirigir, eu faço". O ensaio se dispersou e eu fiquei com um sonho a mais na cabeça.

    Abujamra e Antunes tinham morado juntos em Paris quando jovens. Lembro que na época meu objetivo era arrancar alguma história que os dois tivessem vivido juntos, mas, mesmo com minha insistência discreta, nenhum deles nunca me revelou muito sobre o período. Durante aqueles meses, eu me fiz de garota de recados, levando e trazendo insultos jocosos e elogios sinceros, aquele tipo de coisa que só é possível nas grandes amizades. Coube a mim imaginar o que o gordo e o magro faziam na Cidade Luz enquanto viam e discutiam teatro.

    O projeto da Funarte terminou. Algum tempo depois, Abu me convidou para ir a sua casa, para conversar comigo. Ele dirigiria uma leitura de "Fedra", de Racine, e me escalou como Hipólito.

    Lembro de ter entrado em seu apartamento com a maior das cerimônias, mas, estranhamente, em alguns segundos, eu já me sentia à vontade. Eu não tinha mais medo de Abu, tinha paixão, aquela que devotamos ao pai, ao avô. Tinha a felicidade de estar em sua casa e de dividir com ele o seu tempo. Abu estava sentado em sua poltrona, sorrindo suave, de pantufas e cobertor no colo. Eu me sentei. "Está pronta para um grande fracasso? Porque o fracasso é a coisa mais importante na vida de um artista." Eu estava. Eu ainda estou.

    Em meu sonho, Abu estava lindo, jovem e brilhante como um astro. Enquanto eu chorava, me pegou pelos ombros e tentou me acalmar. "Por que você está assim? Eu estou ótimo! Agora vai e anda bonito." E desapareceu, como acontece nos sonhos, mesmo nos hiper-realistas. E eu segui, tentando andar bonito.

    MICHELLE FERREIRA, 34, atriz e diretora, é autora de "Tem Alguém que nos Odeia", produzida em abril pelo Teatro Nacional da Escócia, e de outras 11 peças.

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