• Ilustríssima

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    Leia trecho de "Ifigênia", da venezuelana Teresa de la Parra

    TERESA DE LA PARRA
    tradução TAMARA SENDER
    ilustração DERLON ALMEIDA

    07/08/2016 02h01

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre o capítulo 2 da terceira parte de "Ifigênia, Diário de Uma Jovem Que Escreveu Porque Estava Entediada", romance de estreia de De la Parra, considerada a primeira grande escritora venezuelana, e que sai neste mês pela Carambaia. O livro traz as impressões de uma jovem que retorna a Caracas após 12 anos na Europa.

    Derlon Almeida

    Depois de navegar por três dias na caravela da própria experiência, María Eugenia Alonso acaba de fazer uma descoberta importantíssima.

    Já não posso resistir por mais tempo à absoluta necessidade que tenho de expressar o seguinte aforismo, cuja verdade transborda de minha alma: "O amor não existe".

    Sim, infelizmente, o amor, o florido amor, o exaltado amor, é: nada! Como tantas outras mentiras piedosas, seu brilho ofuscante não é senão o brilho de uma miragem que fulgura à distância neste árido deserto de nossa vida. Desde que descobri essa verdade tão cruel, desprezo profundamente a existência humana, e preferiria mil vezes ter nascido pedra, lago ou abismo, coisas que, sendo eternas, imóveis e grandiosas, têm a vantagem de nunca se entediar e de não possuir a ridícula pretensão de aspirar ao amor, que, como eu já disse, não passa de uma utopia, um Eldorado, e um fogo-fátuo.

    E como não é nada provável que vovó ou qualquer outra pessoa venha na ponta dos pés ler por cima do meu ombro o que pretendo escrever aqui, coisa que me deixaria um tanto confusa, vou explicar de que forma cheguei à triste e deprimente conclusão de que o amor não é nada ou, para ser ainda mais clara, de que o amor é menos que nada, e muitíssimo pior que nada.

    Sem mais rodeios e sem reticências de nenhuma espécie, vou dizê-lo de uma vez com toda a franqueza. Se possuo essa verdade e se professo esse axioma de que o amor não existe, é porque meu noivo me beijou, e porque eu o beijei, não uma vez, o que não me serviria de base para fazer nenhum juízo nem compor uma experiência, mas sim me beijou umas... duas vezes... não... a verdade, digamos a verdade, acho que foram... três vezes... sim... é isso!... um trio ou tríptico de beijos, o que, em termos de experiência, constitui uma quantidade muito respeitável para poder estabelecer um juízo e formular uma opinião sobre qualquer assunto.

    Ah, e pensar que os poetas escreveram versos e mais versos elogiando as doçuras do beijo! Pensar que Bécquer, por exemplo, disse com aquela deliciosa e perturbadora emoção na qual teve a ingenuidade de acreditar: "Por um beijo, eu não sei o que eu te daria por um beijo!".

    E pensar que também Rostand escreveu maravilhas sobre esse tema naquela cena comovedora da varanda ocorrida entre Roxane, Christian e o pobre Cyrano, que, na minha opinião, foi o mais sortudo dos três, já que, não tendo subido para receber o beijo de Roxane, conservou até o fim suas ilusões e não teve oportunidade de experimentar esta horrível decepção que eu experimentei hoje.

    O beijo! Ah, eu digo agora e repetirei por toda a minha vida: o beijo, "este segredo de amor, em que a boca faz as vezes de ouvido", não é nada, absolutamente nada interessante! O primeiro beijo ainda tem a atração do desconhecido, o terror do proibido e o remorso do ilícito, mas, uma vez passados esse remorso, esse terror e essa atração, não sobra nada para os beijos subsequentes da série!... Ou melhor, sim, sobra algo... algo que vem a ser bastante desagradável... Ah, se ao menos não existisse no mundo o horrível vício do cigarro, e se ao menos os homens não tivessem a mania de cortar o bigode à americana, eriçados e duros como aquelas escovas para esfregar os cavalos, eu ainda... ainda poderia entender por que algumas pessoas tiveram o capricho de elogiar o beijo! Ah, e isso não é nada, se ao cigarro e à escova de cavalos vem somar-se esse temor horrível de que o Rouge Vif de Saint-Ange possa ser descoberto!... Por isso, declaro aqui solenemente e pela segunda vez: eu nunca, jamais, elogiarei o beijo. Tenho absoluta certeza de que é uma invenção insípida, que, além de nos expor ao perigo de sermos vistos por uma terceira pessoa –uma circunstância cuja menor consequência seria a de nos sentirmos ridículos–, acho que, como entretenimento, é muito monótono e pode ser anti-higiênico caso se transforme num hábito.

    Graças a minha natural lentidão de juízo, só elaborei esse raciocínio dois dias depois de ter recebido o primeiro beijo dos lábios de meu noivo. Mas a verdade é que, após formular tal raciocínio, com minha natural firmeza, resolvi também sem mais demora colocar um ponto final a esse costume tão decepcionante quanto anti-higiênico. Naquela mesma noite, depois de me vestir com mais aprumo do que nunca e depois de cumprimentar meu noivo, enquanto me sentava junto a ele, como de hábito, no sofá de damasco azul-escuro, eu lhe disse, repleta de uma distinção austera e senhoril:

    – Leal, sei muito bem que uma mulher virtuosa não deve jamais beijar um homem com quem ainda não tenha se casado. Portanto, já faz duas noites que estou faltando com meu dever, e como o remorso não me deixa dormir, e como quero provar a você, e provar a mim mesma, que sei e sempre saberei resistir às tentações, não lhe darei mais nenhum beijo, mesmo que você me peça de joelhos!

    E foi inútil que meu noivo empregasse as mais suaves, insinuantes e sedutoras palavras de seu vocabulário amoroso, foi inútil que depois, falando muito severamente comigo, invocasse sua autoridade e me dissesse que eu não tinha o direito de emitir tais opiniões, já que, tanto em assuntos de moral como em qualquer outro, minha conduta não deveria se basear jamais em nenhum critério que não fosse exclusivamente o seu. Mas tudo, suavidade e firmeza, tudo, tudo, foi em vão. Desobedecendo-lhe pela primeira vez, respondi com uma dignidade teatral:

    – Não, não e não! Quero que você me admire! Quero que no futuro você tenha confiança em sua mulher! E, para que você veja agora a contundência da minha resolução e a solidez inquebrantável da minha virtude, entre meus beijos, entre mim e você, vou abrir imediatamente um abismo. E então, dirigindo-me a tia Clara, que estava discretamente de costas para nós e costurava sob a luz claríssima do lustre, eu disse:

    – Mas, tia, toda noite você se senta no centro do salão, em plena corrente de ar, e assim vai pegar um resfriado, e talvez, talvez, até uma pneumonia! Acho que você deveria sentar ali, na nossa frente, na poltrona da vovó. Acendendo a luminária de chão, você pode costurar com aquela luz verde, que é ótima para a vista.

    E tia Clara, que já faz algumas noites fica encarregada de vigiar e presidir o salão durante as visitas de Leal enquanto vovó vai se deitar, nem bem eu terminei de falar, levantou-se no mesmo instante e disse:

    – É verdade!

    Encaminhou-se até a poltrona vazia de vovó, acendeu a luminária de chão, dirigiu aos noivos um olhar inquisidor e, depois de dar um longo suspiro, pegou de novo as duas agulhas de osso e voltou a costurar.

    TERESA DE LA PARRA (1889-1936) escritora venezuelana, é autora de "Ifigênia" (1924).

    TAMARA SENDER, 35, jornalista e tradutora, é mestre em literatura brasileira pela Uerj.

    DERLON ALMEIDA, 31, artista plástico, expõe na coletiva "Brazilian Street Art" no museu Horniman, em Londres, até 4/9.

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