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    Por que o pai ausente é um tema literário tão sedutor?

    MARLON JAMES
    tradução CLARA ALLAIN
    ilustração ALEXANDRE TELES

    14/08/2016 03h00

    RESUMO Neste texto, publicado originalmente em inglês no segundo número da revista "Freeman's" (freemansbiannual.com ), lançado neste mês, o romancista jamaicano vencedor do Man Booker Prize em 2015 discorre sobre a dificuldade de escrever sobre a mãe, pela imposição insistente da figura do pai ausente. A tentativa resulta num retrato sincero das singularidades de uma mulher comum.

    XILOGRAVURA DE ALEXANDRE TELES PARA A PÃGINA CENTRAL DA ILUSTRISSIMA DE 14 DE AGOSTO DE 2016

    Os médicos do meu pai descobriram tarde demais, em 2011, que não tinham percebido que seu câncer de cólon estava se espalhando, apesar das cirurgias e da químio. Quando conseguiram encontrar outros a quem culpar pelo fato de a metástase ter passado batido, ele já estava morto. Mas não foi o câncer que o matou. Um coágulo sanguíneo, partindo de sua perna esquerda ou direita, passou facilmente por suas veias, atingiu seu pulmão e fez seu coração parar antes de minha mãe conseguir estacionar o carro para visitá-lo pela segunda vez naquele fim de semana. Recebi a notícia de sua morte pela minha irmã, um telefonema rápido durante o qual o único jeito que ela achou para não desmoronar foi recorrer ao jargão de médicos, "Papai não resistiu". As palavras me deixaram confuso, apesar de ela ter repetido duas vezes, e foi apenas quando ouvi minha mãe gritar no quarto dele que eu soube.

    O problema é que esta não é uma história sobre meu pai. Sempre escrevo sobre ele, mas nunca sobre minha mãe. Mesmo antes de meus amigos e eu chegarmos ao tempo dos enterros, meu pai já ocupava um espaço curioso na minha vida –estava ali, mas nem sempre presente enquanto eu crescia. Presente, mas nem sempre ali quando adoecia. Estava sempre disposto a falar de Shakespeare, Coleridge ou Khalil Gibran, mas só uma vez ele me perguntou se eu tinha namorada. Entre nós sempre houve distância e estática; o único filho que conseguia falar de poesia com ele era o filho que ele não conseguia entender.

    Tudo isso resulta em dois parágrafos de prosa em que o ato de tentar mapear um homem se torna a finalidade da prosa em si. É como se aquele vazio do tamanho de um homem que os pais deixam fosse perfeito para lustrar a poesia, mas eu não pudesse dizer nada de minha mãe sempre presente.

    Era ela quem estava sempre ali, mas sobre ela é sempre mais difícil escrever. É fácil tecer uma ficção inteligente sobre meu pai. Não é tão fácil reunir palavras para falar de minha mãe, aquela que fazia os curativos e comprava os livros da escola, mas também que muitas vezes estava por perto durante os longos períodos de tédio das férias. Mesmo num nível puramente linguístico, "o homem que não estava ali" tem muito mais apelo do que "a mulher que sempre estava presente". Talvez seja porque escritores e leitores valorizam muito a ideia do anseio.

    Mas lá vai o meu pai de novo, sequestrando uma história sobre minha mãe.

    Coisas das quais eu me lembro. A primeira vez que vi minha mãe chorar foi em 1978, quando chegou da Inglaterra a notícia de que minha cunhada tinha morrido. Eu tinha oito anos de idade, e adultos não choravam. Adultos nunca eram fracos. Adultos tinham resposta para tudo. Adultos me davam uma surra e ao mesmo tempo me convenciam de que isso estava doendo muito mais neles que em mim. Ou então: se gente grande chorava, era porque estava sentindo dor física. Mas aquilo era diferente. Ela estava chorando por algo que não dava para ver, ouvir ou tocar. Estava soluçando até. E aí parou, e em uma hora foi como se nada tivesse acontecido. Ela fez a mesma coisa quando meu pai morreu, minha irmã me contou. O som que ouvi pelo telefone, aquele som longo, alto e sem ar, como um engasgo, um grito e um choro tudo ao mesmo tempo. Na volta para casa, a minha irmã dirigiu, e ela ficou sentada em silêncio. E foi isso.

    Mais de uma vez minha mãe perdeu a compostura. Quando, no início dos anos 1980, descobriu que meu irmão mais velho estava fumando maconha, ela lhe deu uns tabefes, não como uma mãe que tenta impor disciplina, mas como uma mulher furiosa porque um homem a havia decepcionado de novo. Ou quando ela gritou comigo no carro, apesar de estar brava com outra pessoa. Nenhum de nós dois pediu desculpas nem mencionou o assunto novamente.

    E tem mais: minha mãe é mentirosa. Uma grande mentirosa, minuciosa, dotada de um incrível poder de convencimento. Talvez esse seja o lado mais engraçado dela. Ela deu um jeito de fazer com que cada um de nós, aos seis anos, acreditasse que ela tinha cem anos, a ponto de chegarmos a repetir isso em sala de aula com expressão tão séria que mesmo a professora começava a se perguntar se não seria verdade. E teve aquela vez em que ela nos disse que íamos nos mudar para uma casa grande no centro da cidade, e depois ficou ali sentada no sofá enquanto decidíamos o que levar e o que abandonar e com que amigos deixaríamos de falar, uma vez que íamos virar gente chique.

    Minha mãe acha que foi o hospital que matou meu pai. Ela nunca teve paciência para meias verdades ou evasivas e às vezes ultrapassa a linha que separa a franqueza da falta de tato. É claro que não dá para saber direito o que houve; em um hospital jamaicano tudo pode acontecer, e o máximo que fizeram para tentar prevenir uma trombose venosa profunda foi mandar o paciente se levantar e andar. Um homem doente, morto pelo hospital que esperava que ele fosse Lázaro; mais de uma vez ela já os chamou de assassinos, em conversas comigo e com minha irmã. E, embora eu diga "Mamãe, não dá para ficar pensando essas coisas", sei que é verdade.

    BELEZA

    Ela nasceu em Linstead, St. Catherine, em 1936. Suas irmãs ainda dizem que ela era a mais bonita das garotas Dillon, e isso já não seria pouca coisa, porque todo o mundo em Linstead sabia da beleza das irmãs Dillon, mas as fotos da época confirmam o que dizem. Há uma foto dela com os cabelos ondulados à la Billie Holiday e toda embonecada, como se saída de um filme dos anos 1950. Em outra, ela e três moças estão todas "mod", de minissaia, coque banana, encostadas num carro esporte. Parece que elas estão na praia, e que são mais amigas do peito do que irmãs de verdade, mas não faço ideia de quem fossem essas mulheres.

    A foto me faz pensar sobre quem ela era antes do casamento e da maternidade. Minha mãe se divertindo. Minha mãe na balada com seu séquito de amigas, talvez até se metendo em encrenca. Minha mãe, uma mulher saindo com amigas. Isso me assombra porque as amigas da minha mãe eram principalmente as do trabalho e, no final dos anos 1980, todas já tinham sumido. Uma vez, quando eu tinha 18 anos ela me disse: "Bem, você sabe que eu não tenho com quem conversar". E essa frase, dita assim, com tal pouco-caso, talvez explique por que o casamento sempre me pareceu um purgatório.

    Esse é um trato que ainda vejo muitas mulheres fazendo, incluindo amigas que não são mais amigas. "Agora que sou uma mulher casada, minha vida é meu marido e minha família." Os amigos perdem importância. Isso era uma história que as mulheres engoliam: que a amizade era feita para passar o tempo até você encontrar seu verdadeiro propósito na vida, como esposa e mãe. A felicidade era algo que você proporcionava a seus filhos, não a você mesma. Minha mãe foi a primeira a personificar uma contradição para mim. Uma coisa que eu veria em dois amigos que tinham traído suas mulheres e um que provavelmente o faria. Homens e mulheres, no meio de famílias em constante crescimento, que ainda assim eram as pessoas mais solitárias do planeta.

    Tem mais essa: ela peida. Mas muito mesmo. Vivo dizendo que um dia ela vai soltar uma explosão tamanha que vai entrar em órbita.

    Meus primos se impressionam com sua capacidade sem fim de expressar doçura. Para eles, ela é "a" tia. Alguém capaz de te envolver com as palavras, como num abraço suave e doce, mesmo que sejam palavras tão simples quanto "Feliz Natal". Quando está com os irmãos, ela vira a irmã mais velha, aquela que ficou na Jamaica, a última das irmãs a se casar e a última a se convencer de que devia se casar com meu pai. No enterro da mãe, em 1976, ela abraçou firme duas de suas irmãs enquanto elas desabavam. Ela mesma estava cansada, os braços em volta de minhas tias, seus olhos ocultos na sombra de seu chapéu preto de aba larga. Só uma lágrima escorria pela sua face direita. Ela é até hoje a irmã na qual elas se amparam.

    E outra coisa: ela continua a me chamar de "baby" na frente de todo mundo. E é assim: "Bye, bayyybeeeee". Aos 21 anos, eu já um homem feito, isso me irritava profundamente; mas agora, sempre que nos despedimos, em casa ou no aeroporto, eu fico ali, em suspense, só esperando ela dizer.

    LAGOSTA

    Uma vez, numa tarde modorrenta de domingo, quando eu tinha uns 15 ou 16 anos, eu estava com meu pai na cozinha, aprendendo como preparar lagosta, e o vi olhando de soslaio pela janela que dava para o jardim. Ele me chamou para perto com um aceno da mão esquerda, enquanto com a direita espetava as lagostas com um garfo enorme e as mergulhava na gordura que pipocava.

    Lá fora, minha mãe estava ajoelhada no jardim, e nós lá de dentro a observávamos como se aquela mulher plantando flores fosse uma desconhecida prestes a se levantar e sair do quadro. "Está vendo ela? É a mulher mais inteligente que já conheci. Mas orgulhosa que só. Ela foi reprovada em um exame só e desistiu de tentar de novo. Será que tem mais alho?" Anos mais tarde, em um jantar de Natal, quando todo mundo estava delirando com a lagosta do meu pai, seu porco assado, seu cabrito ao curry, ela disse, como se falasse consigo mesma, de novo naquele tom de pouco-caso que usa para expressar decepções: "Ninguém diz nada quando eu cozinho".

    Ela nunca falou um palavrão. Nunca. Nem mesmo "merda".

    Flannery O'Connor comentou certa vez que as grandes histórias não se prestam à paráfrase. Tenho a impressão de que a história de minha mãe não se presta a virar uma história. Ou talvez eu só seja capaz de recordar, mas não de rearranjar, reordenar as lembranças na forma de narrativa. Pode ser que, na melhor das hipóteses, eu consiga fazer algo como "7 or 8 Things I Know About Her" [7 ou 8 coisas que sei sobre ela], de Michael Ondaatje. Tenho a impressão de que é algo mais simples, o fato de que talvez eu nem conheça minha mãe. Sei que ela gosta de refrigerante de baunilha e ainda o chama de água com bolhinhas. Ela ainda chama guarda-chuva de sombrinha. Mas ponha a TV numa luta de boxe, e você vai vê-la gritar, frenética, como Norman Mailer diante de uma briga de negros.

    Anos atrás, estávamos sozinhos em casa, era manhã avançada já. Eu ainda morava com ela, então devia ter uns 24 ou 25 anos. Não lembro por que não tinha mais ninguém em casa, mas lembro de ela bater na minha porta e entrar, nervosa e ansiosa.

    "Levanta, rápido", ela disse.

    Fiz o que fazem as pessoas de 20 e poucos anos: perguntei por quê. E continuei deitado na cama, indeciso entre CDs do Jane's Addiction ou do Mother Love Bone.

    "Levanta, vai", ela falou. "Dança comigo."

    Eu não sabia o que fazer. O pior é que parecia sério, e não uma brincadeira. Ela ficou ali esperando, usando o vestido leve de sempre, com o cabelo enrolado para cima.

    "Eu não danço", falei.

    Ela não me ouviu, mas começou a cantarolar, e foi só quando chegou ao refrão que percebi que era "Tennessee Waltz", de Patti Page. Ela disse que era sua canção favorita, mas que nunca a ouvira no rádio. Devia fazer uns 40 anos que ela não a ouvia. Ela ainda estava na porta, esperando. Eu ainda estava na cama, esperando que ela saísse, e o constrangimento foi aumentando. Quando ela foi embora, fiquei pensando se aquela teria sido uma última tentativa sua de ser quem ela fora 40 anos antes e minha última chance de ver quem ela havia sido quando era muito mais jovem do que eu.

    EXORCISMO

    Na manhã do meu exorcismo, fiz uma lista de queixas contra meu pai. Eu tinha ido a uma igreja no centro de Kingston, porque não queria que ninguém da minha igreja ficasse sabendo. E porque aquele demônio em mim, aquele que queria ver Jake Gyllenhaal e Hugh Jackman nus, estava tomando conta da minha vida, quero dizer tomando conta do meu computador. E o folheto de igreja que eu guardara anos a fio a fim de lembrar que os homens com quem eu pensava que queria transar na realidade eram homens que eu queria ser, estava já meio gasto. Pecado – culpa – confissão – perdão – enxágue – repita.

    Eu só queria ser normal. Não, não é verdade. Eu não queria nem um pouco ser normal. Queria querer isso. Eu não queria esposa e filhos, queria querê-los. Eu não queria uma casa no subúrbio com dois carros na garagem e um emprego normal e o cenário normal de um café da manhã numa terça qualquer, a TV ligada enquanto eu despacho as crianças para a escola. Queria desejar isso. Eu não disse nada disso quando os salvadores, um homem e uma mulher, entraram na sala bege de 12 por 12 com três cadeiras e dois saquinhos de vômito no chão. Eles me perguntaram por que eu estava ali. Eu disparei todos os motivos pelos quais eu tinha muita raiva do meu pai, como ele tinha me decepcionado, ofendido e desagradado, porque toda bicha sempre está à procura do pai.

    "Fale-me de sua mãe", disse o homem.

    Abri a boca e saiu um grito.

    JEANS

    Depois que meu pai morreu, minha mãe voltou a usar calças, coisa que ela não fazia desde os anos 1970. Agora ela usa jeans, uma novidade total. Minha irmã mais nova, que mora com ela, anda lhe apresentando práticas de produção, de modo que ela passou a usar base. Mas a morte do meu pai também a livrou de certo tipo de bobagem pensada para agradar os homens, então ela agora usa o cabelo bem curtinho, com cachos pequenos e brilhantes. Ela confessa à filha coisas que jamais revelaria aos filhos, inclusive seu medo terrível de ficar sozinha. Seus filhos moram fora e ela viaja todo ano. Mas não para minha casa –fico petrificado só de pensar no trabalhão que daria "desgayzar" a minha casa.

    Na semana em que seu último filho saiu de casa, tia Elise começou a fazer cerâmica. Minha mãe, que dedicou a maior parte da vida ao trabalho e à família, nunca se deu um espaço. E, tirando a igreja, ela não sabe dar espaço para coisa alguma, embora tenha espaço de sobra. Ela nunca vai começar a fazer cerâmica nem qualquer outra coisa nova, na verdade –o velho medo do fracasso a impede de tentar. Mas é uma mulher que caminha dois quilômetros para ir à igreja, prepara todas suas refeições, dirige como uma motorista profissional e mantém seus irmãos e irmãs unidos. A mãe do meu melhor amigo passou a aposentadoria sentada numa poltrona ao lado da TV, esperando a morte, que demorou sete anos para chegar.

    Eu não diria que minha mãe largou mão, nenhuma mulher que tenha acabado de descobrir a calça jeans largou mão, mas o limbo em que ela parece estar não faz muito sentido. É um limbo em que ela resolve caça-palavras e escreve e-mails para os sobrinhos e netos. Todos trememos ao imaginar o momento em que ela descobrirá o Facebook. Não tenho coragem de perguntar se ela está feliz, mas acho que está. Bom, ela fica feliz sempre que pensa nos filhos, nos netos e na igreja.

    E mesmo quando pensa em meu pai. Eles eram aqueles melhores amigos que nunca deveriam ter se casado. Mas se casaram, fizeram quatro filhos e, no fim da vida dele, quando nada mais oferecia motivo para amargura, voltaram a ser melhores amigos. Era bonito de ver, o ritmo daquela amizade madura entre homem e mulher, o companheirismo livre das complicações do casamento. Ela não sente falta de um marido –o marido nunca foi muito presente mesmo, mas ela sente falta do amigo e ainda chora sua morte.

    Uma vez um homem me convidou para passar o Natal em Paris. Era 2005. Eu não o achava muito atraente, mas não foi por isso que não fui. Eu só pensava no que a minha mãe ia pensar se descobrisse que eu era gay. Eu imaginava que ela se entregaria ainda mais à igreja, com a missão de rezar pela minha cura gay ou, pior ainda, para expiar seu fracasso como mãe. Acho que o meu grito na sala de exorcismo se deveu à súbita percepção de que eu tinha construído minha vida terrível em função do desejo de não decepcionar minha mãe, muito embora ela nunca tivesse me pedido isso. Quando enfim entendi que eu era gay e ponto final, achei que teria de aceitar o fato de que ela não faria mais parte da minha vida. Eu, de novo, não estava vendo minha mãe como uma pessoa, mas como um conceito sobre o qual projetar meu medo e meu desejo para poder reagir. "Como ela poderia não saber? Eu nunca tinha tido uma namorada. Como ela poderia saber? Nunca falamos dessas coisas" –na verdade, nós somos uma família que não conversa, algo que quase acabou com a minha irmã.

    Eu saí do armário na revista do "New York Times", em 15 de março de 2015. Eu não achei que estivesse saindo do armário, mas o texto foi recebido assim e viralizou. Eu finalmente tinha deixado de me importar com o que as pessoas pensavam, e as reações, positivas ou negativas, não me interessavam. No fim de semana anterior, eu tinha almoçado com meu irmão mais velho. Enquanto ele simplesmente pensava que estava almoçando com o irmãozinho, eu sinceramente pensava que seria a última vez que estaríamos juntos. Foi uma estranha semana de despedidas, durante a qual eu agi como se estivesse atravessando o funeral dos meus relacionamentos. Então foi engraçado chegar ao anticlímax pelo qual eu ansiara por 30 anos, no qual minha família e meus amigos me dariam seu apoio após eu sair do armário e, logo em seguida, superariam o fato.

    Mas até meus irmãos perguntaram se eu tinha falado com a mamãe. Eles achavam que eu deveria ligar para ela e explicar, já que ela receberia a notícia ao mesmo tempo que alguns milhões de pessoas, e sabe-se lá como ela reagiria ao fato de eu não ter contado para ela. Concordei, até o momento em que percebi que não queria mais me explicar. Então eu ganhei o Booker, e todas as reportagens que saíram começavam com "o autor jamaicano assumidamente gay". Minha mãe recebe os alertas do Google sobre mim –com certeza ela já estaria sabendo. Eu não ia contar. Maurice Sendak também nunca disse para a mãe que era gay.

    Essa história toda de "assumidamente gay" me fez pensar se a minha mãe voltaria a falar comigo na vida. Isso é dramático demais, é claro que eu sabia que falaria, mas me perguntava se a gente iria além das questões da família. Que está na hora de dar uma aparada na sebe, e que não sei quem deixou de ir à igreja. E ainda mais essa: desde que eu tinha um ano de idade, minha mãe me canta "Parabéns a Você" todo dia 24 de novembro. Dois anos antes, ela tinha ligado para mim na Nigéria. Eu tinha me resignado a nunca mais receber aquela ligação. Não por amargura ou porque ela quisesse me ferir, e sim porque nosso mutismo familiar se estenderia até o canto dela. Mas às 9h do meu aniversário, quando eu estava acordando de ressaca em Londres, meu celular tocou. Era o número dela. Ela não disse alô nem nada, só deu uma respiradinha e cantou.

    MARLON JAMES, 45, escritor jamaicano, venceu o Prêmio Man Booker em 2015.

    CLARA ALLAIN é tradutora

    ALEXANDRE TELES, 37, é artista plástico.

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