RESUMO Embora a paranoia da ameaça nuclear tenha acalmado com o fim da Guerra Fria, o mundo acumula milhares de artefatos atômicos, e o risco de destruição mútua é maior com a ampliação do número de países com acesso a essas tecnologias. Apesar de parecer idealista, um esforço de destruição dos arsenais se faz necessário.
"Destruição mútua assegurada" é uma expressão perversamente ideal para descrever o que ocorreria caso as grandes potências nucleares do mundo entrassem em conflito aberto. Em inglês, o termo tem as iniciais MAD ("mutually assured destruction"), que já diz tudo: "mad" significa louco. Apesar de parecer coisa do passado, da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, a verdade é que a ameaça nuclear persiste e continua sendo a maior que a humanidade poderá enfrentar no futuro.
Na conturbada luta pela presidência norte-americana, Hillary Clinton, a candidata democrata, usou várias vezes o tema como indicação do perigo de ter uma pessoa como Donald Trump no poder: "Imagine se é ele quem vai decidir se usamos ou não armas nucleares durante seu governo!".
Em 1933, enquanto Adolf Hitler ascendia ao poder na Alemanha, o físico húngaro Leó Szilárd propôs a possibilidade de uma reação nuclear em cadeia, na qual nêutrons liberados de um núcleo atômico radioativo colidiriam com outros núcleos pesados, causando sua divisão (fissão) em núcleos menores.
Szilárd mostrou que, a cada vez que essa fissão ocorre, um pouco de energia é liberada, juntamente com outros nêutrons. Esses nêutrons, por sua vez, atingem outros núcleos vizinhos, multiplicando o efeito. A reação em cadeia ocorre para um número gigantesco de átomos, resultando numa enorme liberação de energia. Se a velocidade da reação não é controlada, o resultado é uma explosão de proporções apocalípticas.
Em 1939, trabalhando na Universidade de Chicago com o físico italiano Enrico Fermi, Szilárd demonstrou no laboratório a possibilidade real da reação em cadeia por emissão de nêutrons.
Szilárd compreendeu imediatamente que a realização da reação nuclear em cadeia representava uma mudança radical na história coletiva da humanidade. Descontrolada, a reação poderia ser convertida numa bomba. Szilárd convenceu Albert Einstein a escrever uma carta ao presidente norte-americano Franklin Roosevelt, tentando persuadi-lo da urgência do problema e sugerindo que os Estados Unidos iniciassem imediatamente um programa de desenvolvimento da bomba atômica antes que os nazistas o fizessem. Se Hitler tivesse a bomba em mãos, a história do século 20 teria sido outra.
O resultado foi o Projeto Manhattan, iniciado ao final de 1941, uma operação de proporções ciclópicas liderada no laboratório de Los Alamos pelo físico J. Robert Oppenheimer e supervisionada pelo general de duas estrelas Leslie Groves.
No dia 16 de julho de 1945, a primeira bomba atômica foi detonada no deserto de Alamo Gordo, Novo México. A nuvem em forma de cogumelo atingiu uma altura de quase 13.000 metros (como comparação, o Everest tem 8.800 metros) e quebrou janelas a mais de 150 quilômetros de distância. Quando viu o resultado, Oppenheimer citou a hoje famosa frase do "Bhagavad Gita", o livro sagrado do hinduísmo: "Agora tornei-me a Morte, destruidora de mundos".
Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos bombardearam Hiroshima e Nagasaki, até hoje o único uso de bombas nucleares sobre uma população civil. Entre 90 mil e 146 mil pessoas morreram em Hiroshima, e entre 39 mil e 80 mil em Nagasaki, com aproximadamente metade das fatalidades no primeiro dia após o bombardeio.
Em maio deste ano, o presidente norte-americano Barack Obama visitou Hiroshima para homenagear as vítimas do genocídio. Foi a primeira visita ao local por um presidente americano em mandato. "Conhecemos a agonia da guerra", disse. "Agora, vamos juntos encontrar a coragem de difundir a paz, e lutar por um mundo sem armas nucleares."
Infelizmente, estamos muito longe desse objetivo. Após a bomba de fissão nuclear veio a bomba termonuclear ou de fusão nuclear (a bomba-H), muito mais poderosa e destruidora. A fusão nuclear faz o oposto da fissão, liberando energia ao fundir núcleos leves em núcleos mais pesados. Por frações de segundo, a fusão de isótopos de hidrogênio em núcleos mais pesados repete os processos que, de forma variada, produzem a energia que ilumina o Sol e todas as estrelas.
Os Estados Unidos detonaram a primeira bomba termonuclear em 1952, imaginando ter atingido supremacia bélica total. Em menos de um ano, os soviéticos responderam, detonando a sua primeira bomba termonuclear. A Guerra Fria tinha começado de vez.
Durante as décadas de 1950 e 1960, a construção de armas nucleares disparou. Como comentou o ex-secretário de defesa norte-americano William J. Perry –uma das maiores autoridades mundiais em armas nucleares– em seu livro recém-publicado, "My Journey at the Nuclear Brink" (minha jornada à beira do conflito nuclear, Stanford University Press), foi por pura sorte que a crise dos mísseis de 1962, na Baía dos Porcos, não virou uma guerra nuclear total. Perry trabalhava então obtendo informações sobre os mísseis nucleares soviéticos sendo armados em Cuba e acreditava que cada dia de trabalho seria o seu "último na Terra".
CONTA MACABRA
No auge da Guerra Fria, os EUA tinham 1.054 mísseis balísticos intercontinentais e 656 mísseis nucleares detonáveis de submarinos, segundo o Arquivo de Segurança Nacional americano. Existe alguma controvérsia quanto aos números, o que não é surpreendente, dada a natureza secreta dos armamentos. Por exemplo, o livro-texto on-line "Alpha History" (alphahistory.com) lista que, em 1962, os EUA tinham quase 7.000 armas nucleares, enquanto a União Soviética tinha 500. De qualquer forma, dado o que uma única bomba pode fazer, os números são assombrosos. Hoje, vários países fazem parte desse clube: Grã-Bretanha, França, China, Israel, África do Sul, Índia, Paquistão. Quanto maior o número de países com armamentos nucleares, maior o risco de conflito.
Um programa de destruição das armas nucleares foi iniciado pelos EUA e Rússia. Com os tratados Salt 1 e 2, milhares de armamentos foram destruídos, o que continuou com os tratados Start 1 e 2 do início da década de 1990. (Obviamente, houve problemas com a implementação e ratificação dos desígnios dos tratados. Os números exatos permanecem obscuros.)
Em 2011, o novo tratado Start foi ratificado, forçando a redução pela metade dos lançadores ainda ativos de mísseis nucleares. Como resultado, o número de armas viáveis caiu. O que não significa que não continue absurdamente alto. Em particular, o tratado não regula milhares de armas nucleares ainda estocadas pela Rússia e EUA. Ou seja, o risco de destruição total continua tão real hoje quanto nos anos 1960.
O armazenamento e disponibilidade de milhares de armas nucleares não é o único aspecto dessa questão. Temos, também, que adicionar a ameaça do terrorismo nuclear. Em seu livro, Perry imagina um cenário no qual terroristas constroem um armamento nuclear de pequeno porte e explodem a Casa Branca e o Congresso, matando 80 mil pessoas e causando um completo caos social. Também não é difícil imaginar um conflito nuclear entre a Índia e o Paquistão, com consequências globais devastadoras. É importante lembrar que detonações nucleares têm efeitos que reverberam pela atmosfera, sendo transportados a centenas ou mesmo milhares de quilômetros de distância do ponto de detonação. Não existe um local "seguro" ou isolado, como gostamos de pensar no Brasil.
Para muitos, o conflito nuclear pode parecer uma preocupação distante. Afinal, temos problemas mais imediatos, que já nos ocupam bastante. Nas décadas de 1950 e 1960, as escolas no hemisfério Norte ensaiavam regularmente com os alunos o que fazer em caso de guerra nuclear. Hoje, já não fazem mais, como se o problema tivesse magicamente desaparecido.
Mas a ameaça continua, e é palpável. De certa forma, é ainda maior do que no passado, dado o nível de instabilidade política global e o poder de grupos terroristas que já demonstraram seu completo desprezo pela vida humana. Existe, também, a possibilidade do uso de armas nucleares por um líder instável, como sugeriu Hillary Clinton. Por exemplo, Kim Jong-un, da Coreia do Norte. O que Hitler não pôde fazer, outros poderão.
Apenas um esforço global para desmantelar o arsenal nuclear supervisionado por um conglomerado de países poderia ter alguma chance de ser efetivo. Materiais nucleares seriam neutralizados e mecanismos explosivos destruídos. Talvez esse tipo de iniciativa seja impossível, o sonho dos inocentes. Como na caixa de Pandora, uma vez que o mal sai não volta mais para dentro. Por outro lado, dada a realidade da ameaça, esforços cada vez mais amplos são uma necessidade para diminuir o risco de um holocausto nuclear. Não fazer nada é uma opção um tanto suicida.
É irônico pensar que o mesmo físico que implementou uma reação em cadeia nuclear no laboratório, Enrico Fermi, inventou também o chamado Paradoxo de Fermi, sobre a possibilidade de inteligências extraterrestres. Fermi imaginou que, dada a idade da nossa galáxia (10 bilhões de anos) e seu diâmetro (100 mil anos luz), inteligências extraterrestres teriam tido tempo de sobra para colonizar a galáxia por inteiro. Obviamente, não o fizeram. Onde estão eles?
Uma das respostas possíveis ao paradoxo é assustadora: qualquer civilização que atingir a capacidade de construir armas nucleares eventualmente se autodestruirá. Os ETs não vieram aqui por que se aniquilaram antes disso. Dado o quadro atual global, resta esperar que essa sugestão especulativa sirva de aviso para a humanidade e seu futuro coletivo.
MARCELO GLEISER, 57, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é "A Ilha do Conhecimento" (Record).