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    Amigos fotógrafos buscavam a luz perfeita na Bahia dos anos 1970

    VICENTE SAMPAIO

    21/08/2016 02h08

    Arembepe, 1975

    Para Mario, criar era sinônimo de viver, ou melhor, viver e criar eram a mesma coisa. Mario não gostava de nadar, dar braçadas de um ponto a outro, mas mergulhava; nunca foi um atleta, mas a força de vontade vencia as barreiras, mergulhava nas águas e nas profundezas de si mesmo.

    Havia nesse viver-mergulho um forte impulso de criação que ocupava tudo, uma disposição caótica, selvagem, algo improdutiva, mas solene, apaixonada e bruta à espera de uma lapidação, uma louca compulsão progressiva sem separação do banal de todos os dias. Isso quase o levou a um final trágico e prematuro cujo saldo foram as pernas gravemente fraturadas que o incomodaram pelo resto da vida.

    Vicente Sampaio
    Mario Cravo Neto em Arembepe, em 1975
    Mario Cravo Neto em Arembepe, em 1975

    Ele vivia num contínuo desafio dos limites. No carro, estava sempre em alta velocidade, como se desafiasse e competisse com si mesmo. Andávamos muito juntos pelas estradas e ruas da Bahia e, pelo estado do carro, não teria sobrevivido se estivesse ao lado dele quando aconteceu o acidente.

    Potencializávamos tudo isso com um arsenal de estimulantes, naturais e químicos, possíveis na época. Mario nunca se queixava de nada, a não ser de sua desorganização material. Faltava serenidade, que acabou chegando abruptamente com a lata de sua Brasília abraçando um poste de concreto a 120 por hora, a uma e meia da madrugada, numa curva fechada da orla, em 1975. Reflexos comprometidos pela mistura de anestésico odontológico, uísque e sono.

    No hospital, no dia seguinte ao acidente, fiz uma foto dele na cama com as pernas engessadas e ligadas por uma barra de ferro como um enorme A. Ele queria que eu arranjasse uma escada para fotografá-lo de cima, com os braços abertos como um crucifixo. A ideia obviamente não vingou.

    Houve dois Marios, um antes e outro depois desse acidente.

    Vicente Sampaio
    Mario Cravo Neto em sua casa após acidente em 1975 em foto de Vicente Sampaio
    Mario Cravo Neto em sua casa após acidente em 1975 em foto de Vicente Sampaio

    Uma semana antes, resolvemos sair direto de uma sessão de ampliações que havia durado toda a noite para uma excursão fotográfica a Arembepe, naqueles dias uma aldeia mítica de pescadores e hippies. Como desjejum, tomamos um chá verde, espumante, quase leitoso, da mais pura manga-rosa dos sertões alagoanos e um quarto de ácido cada um. Ainda paramos para uma batida de gengibre na barraca do velho Agostinho, um negro sorridente que vendia carvão na beira de uma avenida.

    Saímos cedinho e pegamos o sol nascendo sobre o mar de Arembepe. Tenho uma lembrança cinematográfica dessa manhã, desse dia. Flutuávamos velozmente no tapete voador que era sua Brasília.

    As imagens surgiam como águas em cataratas e o limite das 36 poses causava uma angustiazinha diante de tanta beleza. Não ouso imaginar como aquilo seria com a inesgotável metralhadora digital. Quando o sol se fazia mais alto, vinham as horas da luz vertical, dura e implacável.

    Depois de um apimentado acarajé com caldo de cana, escolhemos uma sombra de coqueiro para o inevitável bode. Mario possuía aquela sabedoria baiana, do povo do passado, no meio de toda a loucura sabia que a hora mágica viria e sabia esperar, economizar as forças para jogar a rede no grande cardume de luz dourada da tarde, que no outono, na Bahia, é esplendorosa. Separam-me daquele instante 41 anos e consigo recordar os cheiros que havia no ar.

    Com a luz caindo, as sutilezas mágicas surgindo, saíamos fotografando tudo, só parando para trocar filmes, enquanto o final da tarde chegava nos oferecendo generosamente pirações visuais.

    Em casa, esgotados e com a alma lavada, um banho era imprescindível. Mario tinha uma enorme caixa d'água de concreto, com o registro colocado abaixo num cano de grande diâmetro, de onde vertia água com a força de uma marreta, para despertar e encarar mais uma noite em claro revelando filmes. De manhã era na praia que íamos dormir, até o sol incomodar.

    Tive a sorte e o privilégio de conviver com ele naquela época doida, como amigo, colega e vizinho. Ele vai viver para sempre. Atotô!

    VICENTE SAMPAIO, 68, é fotógrafo (vicentesampaio@gmail.com) e as imagens que fez do amigo Mario Cravo Neto estão em sua retrospectiva na galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, até 27/8.

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