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    Arcadio Díaz-Quiñones, Porto Rico, a diáspora e o olhar americano

    SYLVIA COLOMBO

    21/08/2016 02h04 - Atualizado às 00h26 Erramos: esse conteúdo foi alterado

    RESUMO O porto-riquenho Arcadio Díaz-Quiñones vem ao Brasil para o lançamento de seu livro "A Memória Rota - Ensaios de Cultura e Política", nos dias 29/8 (Rio) e 31/8 (São Paulo). Ele falou à "Ilustríssima" sobre a diáspora de seus conterrâneos e as relações de países latino-americanos entre si e com os Estados Unidos.

    Reprodução
    "A nova aula de Tio Sam sobre a arte de se autogovernar", imagem presente no livro "A Memória Rota"
    "A nova aula de Tio Sam sobre a arte de se autogovernar", imagem presente no livro "A Memória Rota"

    "A memória de uma nação pequena não é menor que a de uma nação grande", escreveu Franz Kafka em seus diários, em 1911.

    A frase, citada por Arcadio Díaz-Quiñones na introdução de seu livro "A Memória Rota - Ensaios de Cultura e Política"[trad. Pedro Meira Monteiro, Companhia das Letras, 344 págs., R$ 54,90; e-book, R$ 37,90], vem bem a calhar para definir o olhar que, há tempos, o professor de literatura hispano-americana da Universidade de Princeton dedica à América Latina.

    Natural de Porto Rico, ilha caribenha de colonização espanhola que é hoje um Estado associado dos EUA, Díaz-Quiñones se dedica, por meio da interpretação de relatos históricos, antropológicos e literários, a analisar os embates embutidos na formação da identidade cultural tanto de pequenos países, como o seu, quanto dos de médio e grande porte do continente.

    O autor, cujo primeiro nome evoca o fundador da linhagem dos Buendía no romance "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez (1927-2014), virá ao Brasil para lançar a coletânea de ensaios (veja nota no final do texto).

    "É claro que, para um caribenho, o tamanho do Brasil é até assustador. Mas é preciso lembrar que, no passado, o Brasil foi confundido com uma ilha por seus descobridores, existiu como uma ilha num determinado imaginário, e algo desse imaginário ainda permanece. Por outro lado, as associações entre o passado colonial permitem perceber grandes continuidades culturais entre países de dimensões maiores e pequenas ilhas em todo o território latino-americano", diz, em entrevista à Folha.

    Não por acaso, o primeiro ensaio do livro trata de uma expressão comum em Porto Rico, mas que guarda parentesco com outras semelhantes em outros países da região. Trata-se do verbo "bregar" (lutar, brigar), utilizado na ilha para "contemplar centenas de histórias relativas às dificuldades do ser", explica Díaz-Quiñones. Pode ser usado, por exemplo, em respostas para a pergunta: "Como vai?". "Aqui, 'bregando'". Ou como sinônimo de uma luta "privada ou íntima" para superar algo. Basicamente, trata-se de uma espécie de parente do "jeitinho" brasileiro ou da "viveza criolla" argentina.

    "Essas expressões se assemelham porque se referem a uma atitude de confronto com o poder de um modo geral, que evidencia uma necessidade e uma forma de negociação permanente. Ao mesmo tempo, todas estão arraigadas na cultura oral local", explica Díaz-Quiñones.

    Em vez de só compor um elogio ao termo "bregar", o texto dedica-se também a mostrar que a "brega" tem limites, muitas vezes fracassa, e que essa cultura de confronto popular e oral tem sido marcada por muitas derrotas.

    "Porto Rico incorpora esse sentimento de derrota pelo fato de ter se resignado a essa situação de ser um Estado associado dos EUA e por não conseguir afirmar-se como país soberano."

    Nos últimos tempos, vem crescendo a relevância de movimentos independentistas na ilha, ao mesmo tempo que aumentam seus problemas econômicos –Porto Rico tem atualmente uma dívida de US$ 90 bilhões, com inflação e desemprego em alta.

    De fato, o ponto central do livro são os ensaios dedicados a analisar a Guerra Hispano-Cubano-Norte-Americana, que terminou em 1898 e definiu o domínio dos Estados Unidos sobre áreas do Caribe e do Pacífico. Foi então que Porto Rico passou das mãos da Espanha para as mãos dos EUA.

    Díaz-Quiñones estuda a iconografia produzida pelos norte-americanos após ganhar a guerra para propagandear a conquista dos novos territórios.

    "A imagem foi algo essencial nesse embate dos EUA com a Espanha, por isso desembarcaram tantos norte-americanos nas ilhas a fotografar, registrar e desenhar tudo o que viam."

    É realmente farto o material publicado em diversos meios de comunicação e hoje espalhados por museus e instituições norte-americanas, como o Smithsonian. O livro traz uma pequena amostra disso, num caderno de imagens que retratam a vida em Porto Rico e outras áreas dominadas com um misto de patriotismo e de júbilo pela recente aquisição territorial.

    Coisas como o livreto "Our New Possessions" (nossas novas possessões), dedicado a mostrar como eram exóticos, coloridos e belos as Filipinas, o Havaí, Porto Rico e Cuba, que passavam a fazer parte dos EUA.

    Há fotos de médicos norte-americanos tratando criancinhas porto-riquenhas, retratos da colheita do café e da cana-de-açúcar, grupos de meninos orientados por militares norte-americanos.

    Para Díaz-Quiñones, essa iconografia ajudou a reforçar a ideia de exotismo do país e de certo mistério erótico da mulher caribenha para o imaginário norte-americano. Nas imagens, elas aparecem espreitando por trás de janelas ou junto à natureza.

    "Essa iconografia deu também margem a interpretações preconceituosas e racistas de nossa história, por conta de como o negro era apresentado, sempre como elemento subalterno ou ligado ao atraso de uma vida agrária e colonial", diz o acadêmico.

    As provocações aos espanhóis também estão presentes nesses antigos registros norte-americanos, como as fotos do famoso "garrote vil", muito usado então nesses domínios e considerado um exemplo de execução muito brutal.

    DIÁSPORA

    Outro conceito que atravessa o livro (cujos primeiros ensaios são dos anos 1990) e chega até as reflexões atuais do autor é o da diáspora. Atualmente, existem 3,3 milhões de porto-riquenhos vivendo na ilha e 5,2 milhões nos Estados Unidos.

    "Você começa a se perguntar o que é um país. Um território, ou uma lembrança, uma cultura daqueles que deixaram tal território?", pergunta-se o acadêmico.

    "Na América do Sul, no Cone Sul especificamente, popularizou-se mais a questão do exílio. Mas o exílio é diferente da diáspora, e a diferença no uso desses termos define as culturas locais", afirma.

    Para Díaz-Quiñones, o exílio pressupõe a ideia de um retorno mais possível e é uma experiência pessoal ou de pequenos grupos, enquanto diáspora se refere a populações mais numerosas, transferidas muitas vezes devido à violência ou através dela e que têm bem menos esperanças de retorno. Ambas as experiências, defende o autor, carregam a imaginação do país de origem.

    "O Brasil recebeu um contingente vindo de uma diáspora violenta, que foi o dos africanos escravizados. No caso de Porto Rico, vemos o imaginário do país se tornar mais forte no exterior atualmente. Hoje, quando penso nas canções mais populares de Porto Rico e sobre Porto Rico nos últimos tempos, me dou conta de que todas foram gravadas em Nova York."

    E acrescenta: "A diáspora carrega a ideia do regresso como uma utopia distante, vejo as diásporas como relatos que precisam ser lidos, pois são reinvenções, reinterpretações dos países."

    Em sua análise sobre as diásporas e exílios cujos resultados compuseram e ainda transformam as sociedades latino-americanas, Díaz-Quiñones usa textos literários. Cita, por exemplo, o romance "O Enteado", do argentino Juan José Saer (1937-2005). O livro narra a história de um grumete que é o único sobrevivente de uma expedição espanhola à região do rio da Prata. Na história, de fundo verídico, o rapaz assiste ao banquete em que indígenas canibais devoram seus colegas de viagem. O garoto só é resgatado depois de mais de dez anos vivendo na mesma tribo.

    "Aquele que migra, que se exila ou vai embora por conta de uma diáspora é também uma testemunha do que aconteceu com a sua gente, é um interlocutor privilegiado da memória de seu povo. O que Saer nos diz nesse livro é que aquele que sai, de alguma forma, está designado a contar, a passar adiante um relato."

    O próprio Saer (cuja biografia está sendo escrita pela argentina Beatriz Sarlo), lembra o autor, era filho de uma família de refugiados sírios nascido em Rosário, mas que se autoexilou em Paris por conta da ditadura na Argentina e nunca mais voltou.

    Como esta entrevista foi feita na semana seguinte ao atentado na boate Pulse, em Orlando, Díaz-Quiñones fez questão de enfatizar as consequências da diáspora porto-riquenha nos EUA de hoje –mais de 20 jovens atingidos naquela noite eram porto-riquenhos.

    "Os jovens mortos são parte dessa geração que se vê sem emprego e sem esperança em Porto Rico e migra para os EUA. E que nos EUA está enfrentando agora o racismo e a xenofobia. Neste caso específico, havia também o elemento gay. Mas essa tragédia calou fundo na comunidade porto-riquenha aqui nos EUA porque estamos olhando para um cenário próximo e possível que é muito assustador."

    Para Díaz-Quiñones, a eventualidade de que Donald Trump se transforme num candidato com potencial para vencer a eleição será um retrocesso para os EUA. "As coisas que ele vem falando sobre os latinos, que ajudaram a formar esse país, seu racismo e sua xenofobia, são terríveis."

    Nota:
    "A Memória Rota" terá lançamento no Rio na segunda (29) às 19h na Livraria da Travessa do Shopping Leblon. Haverá um debate com o autor, o crítico e escritor Silviano Santiago, e André Botelho, professor de sociologia na UFRJ. Em São Paulo, o livro será lançado na quarta (31), às 19h, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, com bate-papo entre o autor, o tradutor da obra, Pedro Meira Monteiro (Universidade de Princeton), e o músico, crítico e professor de literatura na USP José Miguel Wisnik.

    SYLVIA COLOMBO, 44, é repórter especial da Folha.

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