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    O maestro Zubin Mehta e o parque Ibirapuera

    SABINE LOVATELLI

    28/08/2016 02h03

    São Paulo, 1987

    Sempre fui apaixonada por música clássica. Na Alemanha, onde nasci, ela faz parte do currículo, e eu participava do coro na escola. Quando cheguei ao Brasil, em 1971, já casada, quis replicar o que acontecia em meu país. Seria uma forma de integração à cidade em que eu iria morar –e, ao mesmo tempo, uma ação positiva para a comunidade e o país, eu pensava.

    Naquela época, era tudo muito diferente; havia poucas opções para os amantes de música erudita em São Paulo e, assim, nasceu a ideia de criar o Mozarteum Brasileiro, inspirado em uma associação argentina. Quando fizemos os primeiros concertos, em 1981, as filas para a compra de ingressos eram enormes, dobravam as esquinas nos Jardins, onde tínhamos o escritório. Encontrei apoio de empresários e tantos outros que me incentivaram e investiram em meu projeto.

    A intensa procura nos provou que as pessoas gostavam de música clássica –o que faltava era facilitar o acesso. Gratuitos e ao ar livre, os concertos no parque Ibirapuera também foram novidade. A estreia aconteceu em 1982, e as apresentações eram realizadas na praça da Paz. Em agosto de 1987, o maestro Zubin Mehta se apresentou com a Filarmônica de Nova York.

    Naquele dia, cerca de 150 mil pessoas lotaram o parque. Zubin ficou fascinado com a receptividade. Foi a primeira grandíssima apresentação no local. Todos nós ficamos surpresos com a quantidade de gente. Depois do concerto, Zubin e eu tivemos muita dificuldade para chegar ao carro, e, quando conseguimos, fomos diretamente para o aeroporto, pois o maestro ia embarcar logo em seguida para a Bahia, em férias.

    Quando entramos no carro, porém, nos demos conta de que todos os nossos pertences tinham ficado no espaço montado para o evento e não existia a menor possibilidade de voltarmos, em função da multidão. Pedimos a outras pessoas, que ainda estavam lá, que nos levassem os passaportes, as passagens e tudo mais, inclusive minha bolsa. No aeroporto, o Zubin queria comer um sanduíche, mas não tínhamos dinheiro. Foi quando alguém o reconheceu e pagou o lanche para nós.

    Zubin é uma pessoa afável, muito generosa, interessada pela cultura local e incansável. Não parava no hotel, só pensava em trabalhar. Ele queria conhecer as pessoas da cidade e saber o que poderia fazer para divulgar a música clássica. Ele sempre se sentiu bem no Brasil. Daquele momento em diante, cada vez que retornava, queria reger um concerto no Ibirapuera. Esse grande evento certamente ajudou a democratizar a música clássica aqui. Seu sucesso de público demonstrou que as pessoas queriam ter um acesso menos protocolar, mais fácil à música erudita.

    No início, o Mozarteum foi um desafio para mim. A música clássica era considerada elitista, e buscar patrocínios, realizar contatos com orquestras internacionais e ainda lidar com a burocracia para importação de instrumentos implicava um processo complexo. Na minha primeira turnê, com a orquestra de Cleveland, os músicos chegaram e eu não tinha autorização para que entrassem no Brasil com seus instrumentos.

    Tive que usar meu poder de convencimento, porque muita gente fora do Brasil não conhecia a estrutura do país para receber orquestras internacionais. Lembro que, uma vez, na Alemanha, a secretária responsável pela orquestra que eu queria trazer para cá me perguntou se os hotéis eram bons, os teatros equipados, se a água era potável etc. Ao final, eu me levantei e pedi para ela olhar bem para mim e ver se meu aspecto era saudável. Ela ficou quietinha, a orquestra veio e foi um sucesso.

    Ao percorrer esse caminho que completa 35 anos, a contribuição de muitas pessoas que acreditaram no Mozarteum possibilitou as bonitas histórias que hoje podem ser contadas. Para mim, o projeto é uma busca permanente por promover o acesso ao mundo da música e das artes em geral.

    SABINE LOVATELLI, 68, alemã, é fundadora e presidente do Mozarteum Brasileiro.

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