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    Cidades flutuantes poderiam ser solução para fugir do Estado

    GIULIANA VALLONE
    ilustração ZÉ VICENTE

    28/08/2016 02h03

    RESUMO Instituto norte-americano pretende instalar, até 2020, cidades flutuantes no oceano, livres da interferência dos Estados hoje existentes. Projeto defende que, sem regulações e impostos, essas ilhas da utopia liberal, inspiradas no pensamento de Milton Friedman, poderiam funcionar como incubadoras de inovação.

    zé vicente

    A solução para o debate crescente a respeito da participação do Estado no dia a dia dos indivíduos pode vir do mar. Ao menos para o Seasteading Institute. A organização sem fins lucrativos norte-americana propõe construir, até 2020, a primeira cidade do planeta independente de um Estado. Com um detalhe: ela é flutuante.

    Com um time de biólogos marinhos, engenheiros náuticos e ambientalistas, o instituto quer construir ilhas de concreto que suportem prédios residenciais e de escritórios, além de infraestrutura para lazer e trabalho dos residentes.

    Para os "marevangelistas", como se define o diretor de comunicação, Joe Quirk, a vida aquática não é luxo, mas uma tentativa de conquistar independência dos governos constituídos. "Os 193 países existentes não representam as ideias que 7 bilhões de pessoas criam. Os jovens de hoje precisam de um lugar onde as ideias de governo do século 21 possam ser testadas, e soluções, descobertas."

    Livres de regulações e impostos, a organização acredita que ideias inovadoras finalmente teriam espaço livre para florescer.

    A ideia enfrenta, desde seu lançamento, em 2008, alguns obstáculos. Desenvolvido inicialmente como forma de construir pequenos territórios aquáticos completamente separados de qualquer país, o conceito defendido pelo instituto teve de ser mudado ao longo dos anos, dadas as dificuldades (e custos) de criar estruturas resistentes às turbulências do alto-mar, longe de áreas costeiras pertencentes às nações contemporâneas.

    Atualmente, diz o Seasteading, seus representantes estão em contato com governos de diversos países a fim de conseguir a autorização necessária para construir a primeira cidade na costa de um deles.

    "Vamos escolher qualquer nação que conceda significativa autonomia política para nossa pequena vila flutuante. Em troca, vamos levar benefícios econômicos e ambientais para o país", diz Quirk. Uma vez obtida a licença, tudo pode correr relativamente rápido.

    Há embaixadores do instituto no Brasil. A ideia, diz um deles, o norte-americano Nima Kaz, é pensar em "uma pequena versão do projeto na região na próxima década". "Assim como Hong Kong serviu como exemplo para inspirar uma reforma chinesa, algumas start-ups de governança flutuando no litoral do Brasil poderiam servir como exemplos para os quais os brasileiros pudessem apontar e dizer: 'Vamos adotar as políticas que comprovadamente estão funcionando no mar'", afirma Quirk.

    ALGAS

    O modelo econômico para tornar essas ilhas sustentáveis foi concebido pelo escritório holandês de desenvolvimento urbano DeltaSync. A base para que as cidades possam produzir alimento, combustíveis e ração para a atividade pecuária viria de grandes fazendas de algas marinhas. No médio prazo, essas cidades poderiam, finalmente, rumar para o alto-mar –e para a independência total.

    O objetivo final é, segundo Quirk, criar sociedades voluntárias. Como as residências são flutuantes e móveis, seus moradores poderiam escolher onde se instalar segundo suas convicções políticas. "Os governos serão como empresas, e os cidadãos, clientes. Acreditamos que isso vá criar um mercado governamental, em que se competirá para atrair residentes."

    A ideia pode soar como uma utopia libertária, mas, como Quirk gosta de ressaltar, foi construída a partir do legado do economista norte-americano Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago, tradicionalmente liberal, e Nobel de Economia em 1976.

    Entre os trabalhos de Friedman, estão a série de TV e livro "Free to Choose" (livre para escolher), ode ao livre mercado que mostra histórias de fracasso e sucesso ao redor do mundo, a depender do nível de liberdade dada aos indivíduos.

    O pensamento liberal continuou na família Friedman. Em 1973, seu filho David lançou o livro "Machinery of Freedom" (as engrenagens da liberdade), em que defendia a total ausência do Estado. Quirk destaca um ponto específico de suas teorias: a ideia de que a mobilidade poderia solucionar os problemas políticos. "Ele sugeriu que se as casas tivessem rodas e as fronteiras fossem abertas, as pessoas insatisfeitas com seus governos poderiam levar suas casas para um governo rival", diz.

    A ideia foi levada a sério pela terceira geração da família. Patri, filho de David Friedman, fundou o instituto em 2008, adaptando para o oceano o conceito defendido por seu pai. Um apoio econômico importante veio de Peter Thiel, criador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, cofundador do Seasteding.

    No campo das ideias, Quirk nega outras influências –como a obra da criadora do objetivismo, Ayn Rand, autora de "A Revolta de Atlas" (1957).

    "Grandes trabalhos de ficção podem inspirar as pessoas, mas nem sempre fornecem um modelo preciso da realidade. Um modelo melhor para o nosso projeto é o [navio de cruzeiros] Allure the Seas. Imagine algo com 20 vezes o seu tamanho e flutuando permanentemente. É o que quero ver em algumas décadas."

    GIULIANA VALLONE, 30, é editora-adjunta da "sãopaulo".

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