• Ilustríssima

    Saturday, 18-May-2024 02:47:08 -03

    Pasolini, utopias e distopias, por Walter Salles

    WALTER SALLES

    28/08/2016 02h03

    Numa carta a um amigo, o jovem Pasolini escreveu: "Não mudei nem um pouco, e isso as vezes me apavora. Quando nos revermos, você encontrará o mesmo adolescente que conheceu nos primeiros anos de nossa amizade".

    Mudar. Confrontar. Avançar. Essas são preocupações centrais de "A Raiva", um dos mais audaciosos documentários que Pasolini realizou anos mais tarde. Mergulho nas utopias dos anos 50 e 60, "A Raiva" desconstrói o quadro político e social da Guerra Fria e do consumismo do pós-guerra, decifrando as contradições de seu tempo com uma coragem rara. Com esse filme-poema radical, Pasolini se tornava um dos mais importantes porta-vozes não só do cinema, mas também de seu tempo.

    Os filmes dos anos 60 e 70 traziam um desejo premente de transformação da realidade. "Teorema" talvez seja o filme de Pasolini que concentra esse desejo de forma mais potente. A sociedade seria a quebra de todos os tabus, ou não seria. De "O Demônio das Onze Horas", de Godard, a "Zabriskie Point", de Antonioni, toda uma família de filmes questionava a ordem estabelecida. Os filmes de Alan Clark, financiados pela BBC, iam na mesma direção. Intervinham no real, com urgência. Em "A Comuna", Peter Watkins trazia a história para o presente, embrulhando os códigos tradicionais da ficção e do documentário.

    Nesses filmes, a utopia não era mais uma projeção idealizada, inalcançável, do futuro. A utopia era algo para ser construído aqui e agora. O oposto da "utopia clássica" de Thomas Morus, ou da República de Platão. Enquanto os filmes propunham interpretações a quente da realidade, discussões em bares e universidades prolongavam e amplificavam o debate.

    Reprodução
    Cineasta italiano Pier Paolo Pasolini
    Cineasta italiano Pier Paolo Pasolini

    Outros filmes e cineastas tornaram essa discussão ainda mais complexa. "Stalker", de Tarkovski, que o diretor definiu como a busca de um "paraíso interior". Todo o cinema da fronteira, a começar pelo "western", era a invenção de um território –e portanto, de uma utopia. A mesma utopia do sonho americano que seria desconstruída anos mais tarde por Dennis Hopper em "Easy Rider". De "Julieta dos Espíritos" a "E la Nave Va", Fellini também se ocupou dessa matéria, desde que aceitemos a relação entre utopia e subconsciente.

    Poucos países trataram tão bem dessa questão quanto o Brasil do final dos anos 50 e início dos anos 60. O "Sertão Vai Virar Mar" de Glauber Rocha e o cinema novo anunciavam um porvir que a arquitetura de Niemeyer e Lucio Costa, a bossa nova de Tom, João e Vinicius, a poesia de Drummond, entre tantos outros, também projetavam. Ao imaginar um país livre e independente, com seus próprios códigos políticos e estéticos, esses artistas diminuiam a distância entre o país desejado e o país possível. O golpe de 64 iria ceifar o anseio libertário de toda uma geração.

    Corta para hoje. Descrevendo a inanição do debate político no seu país, um amigo italiano me disse recentemente: "Que falta nos faz alguém como Pasolini!!". Lá como aqui, a palavra "distopia" se tornou a bola da vez, a lente pela qual se analisa a realidade. É como se o pesadelo de "Brazil", de Terry Gilliam, tivesse se alastrado mundo afora. Como passamos do desejo e do tesão dos anos 60 e 70 para a onipresente negação distópica? A queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética, a conversão da China a um capitalismo de estado deram subsídios para os pensadores conservadores que, como Francis Fukuyama, decretaram o "Fim da História" e, portanto, a morte de qualquer possibilidade utópica. Na mesma linha, os "think tanks" próximos do partido republicano norte-americano disseminaram a ideia de que a economia de mercado e o capitalismo liberal eram a forma social final, indiscutível, que não poderia ser ultrapassada. Da utopia de Morus, passamos à utopia do mercado.

    É o que Zizek chama de "utopia capitalista", que ele define como a "solicitação ilimitada de novos e novos desejos de consumo, que as pessoas são não somente autorizadas a solicitar, mas impelidas". Essa "utopia capitalista" é associada à morte das ideologias, à ideia de que, nesse universo pós-político, a última forma de liberdade é a liberdade de consumo. Um mundo onde todos os desejos alheios ao mercado são cerceados é o exato contracampo da experiência utópica. É, também, o exato contracampo das ideias que os filmes independentes dos anos 60 e 70 defendiam.

    Existe uma terceira forma de entender o que pode ser a utopia, diz Zizek. Não seria a utopia clássica com sua projeção de um universo idealizado, nem a utopia capitalista, que fabrica meios de satisfazer anseios imediatos. "A verdadeira utopia para mim é um ato que se inventa quando não temos mais alternativas. É a coragem de encenar o impossível, agora. É uma questão de sobrevivência. O futuro será utópico ou não será."

    Sintomaticamente, a fala de Zizek remete à "Raiva" de Pasolini. "Estamos todos aqui, agora", disse o realizador italiano ao falar do renascimento do homem político, depois dos anos terríveis do fascismo. "Estamos todos aqui", imagino que ele repetiria hoje. Para melhor evidenciar que a história continua, a cada instante.

    WALTER SALLES, 60, diretor de "Diários de Motocicleta" e de "Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang".

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024