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    Leia tradução de Barbara Heliodora de "Eduardo 3º", de Shakespeare

    WILLIAM SHAKESPEARE
    tradução BARBARA HELIODORA
    ilustração DEA LELLIS

    04/09/2016 02h08

    SOBRE O TEXTO "Eduardo 3º" foi uma das últimas peças a entrarem para o cânone shakespeariano, no fim dos anos 1990, após longa controvérsia sobre sua autoria. Embora se pense que o dramaturgo inglês possa ter sido só um dos autores da obra, o consenso geral é que certas partes, como a cena 2 do ato 1, da qual se extraiu este trecho, são da pena dele. Entre as fontes usadas para a peça, que trata do início da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), está "O Palácio dos Prazeres" (1567), de William Painter, base para as cenas da paixão do rei pela Condessa de Salisbury, que aqui têm seu primeiro encontro. A peça foi a última tradução feita por Barbara Heliodora (1923-2015) e sai no terceiro volume do "Teatro Completo" de Shakespeare, que a Nova Aguilar lança em outubro.

    (Entra a Condessa de Salibsury.)

    Rei Eduardo Essa é a condessa, Warwick, não é mesmo?

    Warwick É; cuja beleza assusta os tiranos,
    Ou como o vento mau a rosa, em maio,
    Suja, seca, sombreia, e assim destrói.

    Rei Eduardo Já foi mais bela, Warwick, do que é?

    Warwick Senhor, ela não seria nada bela
    Se ela estivesse aqui, pra manchá"'la,
    Como eu a vi no tempo em que era ela.

    Rei Eduardo Que estranho encanto teriam seus olhos
    Quando excediam o excelso de agora,
    Se em seu declínio podem atrair
    Quais súditos meus olhos majestosos,
    Que os olham com excessiva admiração?

    Condessa Com humilde dever eu me ajoelho
    E com os joelhos curvo o coração,
    Símbolo de obediência a sua alteza,
    Com milhões de gratidão de súdita,
    Pela sua presença só por próxima
    Expulsou meu perigo dos portões.

    Rei Eduardo Levante-se, senhora; trago a paz,
    Mesmo que seja comprada com a guerra.

    Condessa Não sua; os escoceses já se foram;
    Galopam pra Escócia com seu ódio.

    Rei Eduardo Pra não ceder aqui a vil amor,
    Vamos nós persegui-los. Venha, Artois.

    Condessa Bom soberano, detenha-se um pouco;
    Deixe o poder de um grande soberano
    Honrar nossa casa; o conde, na guerra,
    Ao sabê-lo há de sentir-se triunfante.
    Então, senhor, não poupe sua condição
    De estando aí não cruzar o portão.

    Rei Eduardo Perdão, condessa; não chego mais perto
    Sonhei com traição, e sentir medo é certo.

    Condessa Traição daqui não vai se aproximar.

    Rei Eduardo (À parte.)
    Não mais que esse fascinante olhar,
    Que me envenena assim o coração,
    Sem cura por ciência ou por razão.
    Ele não está ao sol só, afinal,
    E sua lua tira a luz de olho mortal;
    Duas estrelas diurnas posso ver
    Que mais que o sol fazem"'me luz perder.
    Desejo contemplativo é desejar
    Que possa a contemplação dominar.
    Warwick, Artois, montem; vamos embora.

    Condessa Que mais posso dizer ao soberano agora?

    Rei Eduardo (À parte.)
    Pra que língua, se os olhos falam tanto,
    Falando mais que da oratória o encanto?

    Condessa Não seja sua presença sol de abril
    Que alegra a terra e logo vai, sutil;
    Não deixe mais alegre o muro externo
    Do que seria a honra ao lar interno.
    Nossa casa, senhor, qual camponês,
    De forma rude e simples é cortês.
    Sem pretensão, por dentro é adornada
    Co'a riqueza do campo, que é ocultada.
    Onde do ouro a riqueza está deitada,
    Não tem flores o chão da natureza;
    É infrutífero, estéril, tem dureza;
    E onde a relva faz reconhecido
    O seu perfume multicolorido,
    Cave e veja que o produto cantado
    No esterco e no que é podre foi plantado.
    Pra limitar essa comparação,
    Em que estado os muros 'stão:
    Bem melhor do que o que digo é, assim,
    Convencer-se por si, e não por mim.

    Rei Eduardo (À parte.)
    Sábia e bela; que paixão pode ouvir
    Se uma à outra de guarda vem servir?
    Condessa, meu labor me chama embora,
    Mas o adio, pra servir a senhora. -
    Senhores, hoje à noite aqui sou hóspede.

    (Saem.)

    WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616) poeta, dramaturgo e ator inglês.

    BARBARA HELIODORA (1923-2015), nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, crítica, ensaísta, professora e tradutora carioca.

    DEA LELLIS, 32, é ilustradora e tem uma loja de biscoitos artesanais, a Cias. do Chá.

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