• Ilustríssima

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    Os métodos que dividem as águas no debate econômico

    MARCOS DE BARROS LISBOA
    SAMUEL PESSÔA

    04/09/2016 02h02

    RESUMO Autores rebatem crítica feita em 21/8 de Luiz Fernando de Paula e Elias M. Khalil Jabbour a texto por eles aqui publicado sobre diferenças entre economistas tradicionais e heterodoxos ("As razões da divergência, 17/7). A questão migra do debate ideológico entre direita e esquerda para a discussão sobre método.

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    Em artigo publicado na "Ilustríssima" em 17/7, argumentamos que, no Brasil, o debate entre economistas de esquerda e de direita é diferente do que ocorre em outros países. Usualmente, como proposto por Norberto Bobbio (1909-2004), o debate decorre da contraposição entre igualdade social e eficiência econômica.

    Economistas tradicionais, que compartilham método e instrumental de análise, divergem, por exemplo, sobre qual peso deve ser dado às políticas de inclusão social tendo como contrapartida maior tributação e menor crescimento econômico. Trata-se de debate sobre modelos de sociedade e as escolhas a serem feitas, não sobre os métodos de análise.

    No Brasil, porém, o debate é outro. Por aqui, parece haver consenso em favor de um Estado de bem-estar social e políticas que reduzam a desigualdade. A divergência ocorre sobre como avaliar as diversas abordagens que se propõem a enfrentar os desafios da política pública, apesar da concordância sobre os objetivos.

    Nosso artigo procurou apontar as principais características que contrapõem economistas ortodoxos, que são amplamente dominantes na academia internacional, e os heterodoxos, peculiarmente relevantes no Brasil.

    A DIVERGÊNCIA

    Em sua crítica ao nosso artigo, Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour ignoram nosso argumento principal e propõem um novo debate, resgatando uma velha controvérsia da filosofia da ciência. Em que medida os testes empíricos permitem inferir verdades sobre a economia? Há uma única abordagem para a construção da ciência?

    Provavelmente esse novo debate decorre de como diferenciamos ortodoxos e heterodoxos. Ambos partem de visões de mundo e conjecturas sobre a natureza dos fenômenos e as possíveis implicações das diversas políticas públicas. A diferença, propomos, decorre de como esses diferentes economistas justificam os seus argumentos.

    Os economistas ortodoxos, ou tradicionais, procuram utilizar as conjecturas mais robustas frente aos testes estatísticos disponíveis, que, entretanto, podem ser revistas em decorrência de novos modelos, novas bases de dados ou novos testes estatísticos. Muitas vezes, os resultados são pouco conclusivos, com testes igualmente rigorosos obtendo resultados distintos, decorrentes de variações na metodologia ou nas bases de dados utilizadas, o que leva a debates, nem sempre bem-sucedidos, sobre como superar a controvérsia. A vida é dura na economia tradicional. O rigor requer acesso comum às bases de dados e conjecturas precisas que possam ser rejeitadas pelos dados.

    Economistas dessa tradição concordam sobre o método de trabalho, ainda que, muitas vezes, divirjam sobre as conclusões, caso os testes empíricos não sejam suficientemente robustos.

    Outra é a abordagem heterodoxa dominante no Brasil. Em vez de conjecturas precisas e testes empíricos, essa abordagem prefere a construção de grandes narrativas que procurem dar conta de aspectos da história e fatos estilizados selecionados, tendo como ponto de partida princípios fundadores, a descrição das hipóteses supostamente realistas e o emprego de argumentos de autoridade –"isso é verdade porque fulano disse".

    O artigo de Paula e Jabbour ilustra admiravelmente bem essa abordagem.

    Em momento algum os autores questionam a nossa taxonomia, contrapondo exemplos de abordagens heterodoxas que, sistematicamente, testam empiricamente as suas conjecturas, utilizando a melhor metodologia disponível.

    A sua crítica é de outra natureza. A divergência entre economistas tradicionais e heterodoxos seria decorrência, apenas, da contraposição de visões de mundo. As frases de efeito de autoridades supostamente seriam suficientes para demonstrar a sua conclusão.

    MISÉRIA

    Os autores compartilham da dificuldade da maior parte da heterodoxia em conhecer o que criticam. Uma das aspas de sua crítica faz referência a um artigo em duas partes, "A Miséria da Crítica Heterodoxa", escrito há duas décadas por um dos autores deste texto, Marcos Lisboa que nele apontou diversas afirmações equivocadas de heterodoxos sobre a economia tradicional e os seus supostos princípios inquestionáveis.

    Ao contrário do que propõem diversos heterodoxos, muitos do que denominam princípios inquestionáveis são parte da agenda de pesquisa da economia tradicional, como a hipótese de racionalidade, os casos em que as soluções de mercado são ineficientes, ou, ainda, a macroeconomia com juros nominais nulos e seus resultados contraintuitivos, como o paradoxo da parcimônia.

    A crítica apenas parece indicar que alguns heterodoxos não leram o que criticam. Os exemplos são muitos, como a crítica de Paul Davidson aos modelos de "sunspots", a equivocada compreensão da hipótese de racionalidade, ou a suposição de que o conceito de equilíbrio indica uma inerente tendência à estabilidade dos preços e das quantidades, que seriam incompatíveis, por exemplo, com processos caóticos, entre muitos outros.

    Paula e Jabbour argumentam que a abordagem empírica da economia tradicional não permite inferir conclusões verdadeiras sobre a natureza de uma economia de mercado, existindo diversas outras análises igualmente válidas. Os autores, porém, não propõem um critério para selecionar as mais adequadas.

    Talvez para frustração da heterodoxia, a abordagem tradicional não garante acesso à verdade, tema da filosofia e da religião. Ela tem objetivos mais modestos: utilizar os testes empíricos para selecionar os argumentos mais plausíveis, com base na melhor estatística disponível, como proposto por um dos autores deste artigo, Marcos Lisboa, em "Linguagem, Procedimentos e Pragmatismo na Tradição Neoclássica" (Estudos Econômicos, 2001).

    Como os heterodoxos selecionam as suas conjecturas? Qual o critério utilizado, dado que são críticos de como os economistas tradicionais utilizam métodos estatísticos? Se não a estatística, a revelação? Como sabem que as suas hipóteses, os seus pontos de partida são mais realistas? Ou não há critério possível? Nesse caso, qual o papel da academia? Na imensa maioria dos trabalhos, porém, o argumento se esgota na formulação de princípios e na construção da narrativa, sem responder a essas perguntas.

    MÉTODO

    O que define, a nosso ver, a economia tradicional é o seu método de trabalho, a formulação de conjecturas precisas que devem ser testadas com base na melhor evidência disponível, e não uma suposta visão de mundo que predetermine o que deve ser concluído.

    Testar relações de causalidade é particularmente difícil em diversas áreas das ciências humanas. Isso não significa, porém, que não se deva sempre buscar aperfeiçoar os modelos utilizados, analisar as bases de dados disponíveis e apontar as limitações dos resultados obtidos, como mostram a extensa pesquisa sobre desenvolvimento econômico nas últimas duas décadas e os trabalhos de Robert Fogel, Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff em história econômica.

    Na medida em que uma abordagem com hipóteses diferentes das usuais resulte em conjecturas precisas e tenha melhor aderência à evidência empírica, ela deve se tornar a nova economia dominante.

    Aliás, isso foi exatamente o que ocorreu na academia internacional com os modelos que questionavam a hipótese de racionalidade, há poucas décadas. Das peculiaridades heterodoxas, digamos assim, foram progressivamente desenvolvidos modelos com conjecturas testáveis que davam conta de fenômenos incompatíveis com a abordagem até então dominante. Esses modelos, atualmente, fazem parte da agenda de pesquisa da economia tradicional e são reconhecidos como contribuições para a análise de problemas relevantes.

    O mesmo ocorreu com os modelos institucionalistas utilizados na pesquisa sobre história econômica por Douglass North e Avner Greif. Progressivamente, a evidência empírica demonstrou, inclusive, a relevância das regras sociais e do desenho das instituições para compreender as diferenças de renda per capita entre os países, como sistematizado no livro "Por que as Nações Fracassam", de Daron Acemoglu e James Robinson.

    Assim se desenvolve a heterodoxia na academia internacional, que busca construir uma abordagem alternativa à dominante, mas com o mesmo método de análise e validação dos resultados. A heterodoxia do passado, caso bem-sucedida, se torna a ortodoxia do presente.

    Já por aqui a história tem sido diferente, com raríssimas, e meritórias, exceções. A heterodoxia parece se esgotar em desqualificar a divergência por defender supostos interesses indevidos; a denúncia ao invés da contraposição de argumentos e da evidência empírica.

    Deve-se temer os economistas que utilizam dados e testes estatísticos em seus argumentos. Pior, apenas, são os que não utilizam dados.

    MARCOS DE BARROS LISBOA, 51, doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia, é presidente do Insper.

    SAMUEL PESSÔA, 52, é doutor em economia pela USP e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

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