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    Quatro poemas líricos de Ricardo Domeneck

    RICARDO DOMENECK
    RODRIGO VISCA

    11/09/2016 02h08

    SOBRE O TEXTO Os poemas aqui reproduzidos estarão na nova edição de "Cigarros na Cama". Ao livro de 2011 foi acrescida a seção "Lamúrias Posteriores para os Ouvidos Moucos d'O Moço", que inclui estes e outros poemas líricos inéditos. Com a publicação, a editora Luna Parque dá início, no fim de outubro, a projeto de reedição de livros de poesia. Ao lado de "Cigarros na Cama", sai ainda nova edição de "Risco no Disco" (1981), de Ledusha.

    Rodrigo Visca

    Eu culpo minha corcunda,
    me debrucei
    demais sobre você,
    esse foi meu primeiro
    tropeço.
    E ao embalo do seu colo,
    notei logo tudo encavalar-se.
    Fui seu contrapeso
    de gangorra,
    seu cavalo-de-balanço
    capenga.
    Eu corria as mãos
    por suas ancas
    fortes e moças
    e sentia já nas minhas
    os sintomas
    do engessamento.
    Você dançava
    e eu me descadeirava,
    eu expectorava
    e o seu peito subia e descia
    calmo. Escute o meu: range
    feito roda de carroça.
    E quando seus olhos
    vagavam para fora
    da janela, era
    como se eu
    fosse defenestrado.
    Já era ele
    este outro
    que você buscava
    longe, fora da sala
    onde meu corpo
    estava tão
    ao seu alcance?
    Em que momento
    um eu
    que era um
    passa a ser só outro,
    outro só?

    .

    Antídotos matinais,
    o primeiro cigarro
    e xícara de café,
    as pernas bambeiam,
    a cabeça fica leve,
    é como experimentar
    o seu amor de novo
    por três segundos
    toda manhã.

    Só em caso de emergência

    na precisão
    de um transplante
    eu doaria a você
    um pulmão um rim
    meio fígado falido
    & se no presídio
    sem grana de fiança
    acarretaria os custos
    ou roubaria um banco
    em alto estilo-bonnie
    desde que você
    me desclydeficou
    & se feito refém
    do pentágono
    da al-qaeda
    de aliens
    da yakuza
    eu em resgate
    com direito a
    cavalo estandarte
    e mil trombetas
    mas não
    não tenho tempo
    para o cinema
    não nãotenho tempo
    para um café
    não não tenho
    tempo
    como vai
    tudo bem

    Contando os dias

    1884 anos atrás, num dia deste mês de outubro, Antínoo há-de afogar-se no Nilo.
    1854 anos depois, num dia deste mês de outubro, O Moço há-de nascer.
    :
    ou
    :
    1884 anos atrás,
    num dia (como outro qualquer)
    deste mês de outubro,
    Antínoo há-de morrer
    entre as margens do Nilo.

    1854 anos depois,
    num dia (como outro qualquer)
    deste mês de outubro,
    O Moço
    há-de nascer
    às margens
    do Reno.
    :
    ou
    :
    Antínoo morreu hoje.
    Começo a contar os 677.176 dias até o nascimento d'O Moço.
    :
    ou
    :
    Estou em Paris. Hoje é 14 de julho de 1789 e fazem muito barulho fora da janela de minha cama.
    Suo só. Quero apenas dormir. O Moço ainda não nasceu.
    :
    ou
    :
    Depositei hoje flores às margens do Reno. Fiz uma oração por Antínoo, a um Deus que ele não adorou.
    :
    ou
    :
    Soube que um substituto meu tornou oficial a religião dos escravos.
    Desaprovam as lindas estátuas de Antínoo. Quereria morrer no Nilo, mas espero às margens do Reno.
    :
    ou
    :
    Antínoo é morto. O Moço ainda não nasceu. Minha mulher queixa-se de minhas lamúrias pelos cantos. Ela chama-se Sabina. Raptem-na, por favor.
    :
    ou
    :
    – Eclodiu a Guerra!
    – Onde?! Não façam crateras onde há-de nascer O Moço!
    :
    ou
    :
    Houvesse nascido às margens do Reno quando Antínoo ainda não singrara pelo Nilo, teria eu chamado O Moço de bárbaro? Não. Sob minhas tetas de loba, substituiria a Rômulo e Remo.

    RICARDO DOMENECK, 39, é escritor, autor de "Medir com as Próprias Mãos a Febre" (7 Letras).

    RODRIGO VISCA, 36, é artista plástico.

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