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    Conselhos modernistas de Lucio Costa e Oscar Niemeyer

    LAURO CAVALCANTI

    18/09/2016 02h06

    Rio de Janeiro, 1991

    Conheci Oscar Niemeyer e Lucio Costa no início dos anos 1980. Organizei, em 1983, uma grande retrospectiva da obra de Niemeyer no Museu de Arte Moderna do Rio; e encontrei Lucio em sua casa no Leblon, levado por José Zanine Caldas. De ambos fiquei amigo, visitando-os ao entardecer, à vista das areias da orla carioca. Sem as nossas conversas, o sol teria se posto no mar de Copacabana e do Leblon longe dos meus olhos e os meus estudos sobre modernismo não teriam tido a mesma intensidade.

    Era um convívio de admiração, respeito e intimidade, inclusive para assuntos pessoais. Tornei-me amigo das filhas de ambos, Maria Elisa Costa e Anna Maria Niemeyer. Compartilhei almoços e festas em família. Algumas vezes, doutor Lucio encerrava as caminhadas matinais percorrendo dois quarteirões e retribuindo minhas visitas, sempre muito observador e generoso com a arquitetura de meu apartamento.

    Os dois foram, de certo modo, coprotagonistas em minha primeira experiência de gestão pública.

    Lauro Cavalcanti/Acervo Pessoal
    Cavalo que Lucio deu a Lauro em 1994, por ocasião da abertura de sua exposição no Paço Imperial, do qual Lauro era diretor, e dedicatória de 96 no livro "Registro de uma Vivência"
    Cavalo que Lucio deu a Lauro em 1994, por ocasião da abertura de sua exposição no Paço Imperial, do qual Lauro era diretor, e dedicatória de 96 no livro "Registro de uma Vivência"

    Eu havia voltado de uma estada de um ano e meio em Paris e fui convidado para ser diretor do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional. Até então, eu jamais aceitara qualquer cargo de chefia, por me considerar mais ligado à escrita e aos estudos. O convite chegou numa noite que encerrou um dia especial no trabalho.

    Eu tinha sido convocado ao balcão da portaria do Iphan porque havia "um velho sem carteira" me procurando. Eu tinha que "atestar a sua identidade".

    Eram tempos de Ipojuca Pontes e Fernando Collor, com zero delicadeza no desmonte da dinâmica Pró Memória comandado por inventariante da Polícia Federal. Desci. E me deparei com ninguém menos que Lucio Costa, que estava pelo centro e queria continuar a conversa do dia anterior. Queria rever o seu antigo escritório e trazia desenhos do Park Hotel.

    O porteiro não cedeu aos meus apelos para que deixasse entrar um dos fundadores do Serviço do Patrimônio. Fomos partilhar vinho e um sanduíche de queijo do reino no vizinho Villarino, um café tradicional carioca.

    Além dos costumeiros assuntos modernistas, doutor Lucio me surpreendeu. Disse que não ficasse deprimido com a minha recente separação, porque meu apartamento ficara muito mais bonito e espaçoso. "Não sei para a sua vida, mas para a casa a ruptura fez um bem danado: a cadeira Wassily, do Marcel Breuer, que sua ex-mulher levou, não combinava com aquela do Corbusier, mais delicada e bonita, que ficou. Inexorável e paulatinamente, esses benefícios migrarão para você próprio." Ele me animava de modo elegante e pouco invasivo.

    Lucio acreditava, com fervor, que a arquitetura devia ser um instrumento para melhorar as condições do ser humano. Esse episódio contou muito para a aceitação do novo posto profissional, ainda que tivesse que morar em Brasília.

    Na tarde do dia seguinte, fui ao escritório de Oscar Niemeyer contar da minha mudança para o Planalto Central. Com seu olhar e jeito mansos, o arquiteto disparou: "Está maluco? Brasília é horrível, chata, uma cidade de funcionários públicos...". Ante meu pasmo e longo silêncio continuou: "Pela sua cara, o trabalho é bom; peça uma passagem semanal de ida e volta, estada num hotel e fique no Rio de sexta a segunda-feira...". Deu o assunto como resolvido e entrou pela política: "que idiota esse governante atual... e que azar, dentre milhões de espermatozoides, este venceu a corrida para fecundar o óvulo da mãe dele".

    Pois me deram todas as condições sugeridas por Niemeyer. Desse modo, na ponte aérea Rio-Distrito Federal, tive, entre 1991 e 1993, a minha primeira experiência de gestão no setor cultural.

    LAURO CAVALCANTI, 62, arquiteto, é coautor de "Patrimônio Construído", que a editora Capivara relança dia 18/10.

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