• Ilustríssima

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    Leia trecho inédito do novo livro de Cristovão Tezza

    CRISTOVÃO TEZZA
    ilustração ADAMS CARVALHO

    18/09/2016 02h07

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre o romance "A Tradutora", em que Tezza volta à personagem Beatriz, de "Um Erro Emocional", de 2010, que agora recebe uma proposta para ser intérprete de um executivo da Fifa antes da Copa do Mundo. A Record lança o livro no começo de outubro.

    Beatriz voltou à mesa com a toalha úmida erguendo uma torre torcida na cabeça –estou atrasada– e retomou imediatamente a tradução, um pensamento filosófico que, herdeiro novato dos estruturalismos franceses e bisneto da escola de Frankfurt, faz do pessimismo uma ontologia; a sombra da conspiração universal, esse desespero por não perder tempo, Beatriz lembrou, esperando o pão aquecer no forno, a vida é curta e a vida é sonho, afinal um resíduo da Idade Média que sobrevive como explicação do mundo visível, aqui –nas mãos de Foucou Foucault, Bur Bourdieu– sempre erro estupidamente a digitação desses nomes, letras disléxicas, será sintoma de –e satélites– transformou-se em metafísica, um jogo de armar de solução impossível, um cul-de-sac [beco sem saída??] ressentido cujo único objetivo é fortalecer o poder do bruxo contemporâneo, o sábio transcendente de dedo em riste, não a elucidação do real. O irracionalismo amoral triunfante, refugiado em suas instâncias de prestígio, num retorno espetacular ao –a frase está muito longa, é preciso um ponto aí, releu Beatriz, e conferiu o original, o espanhol barroco, florido e retumbante do catalão Felip T. Xaveste, é assim mesmo, frases intermináveis, um catalão brilhante, como lhe disse Chaves, o editor paulista, ao telefone e depois ao vivo, no restaurante da Figueira (na verdade, Beatriz conferiu na wikipedia, um falso paulista, nascido em Minas Gerais, mas com sotaque paulistano, o que significa que ele foi para lá novinho): preciso desta tradução para o mês que vem, antes da Copa do Mundo, quando então ninguém vai ler nem bula de remédio e vamos ter de aguentar quarenta dias não deste Felip catalão, mas do grande filósofo brasileiro Felipão, e ele deu uma risada de todos os dentes, Você viu a risada desse filho da puta?, Donetti advertira no último encontro em Curitiba, para onde ele veio correndo em seguida à viagem dela a São Paulo; depois de três dias tensos em Curitiba, como sempre acontecia nos últimos tempos, Beatriz levou-o de volta ao aeroporto quase que à força, eu preciso trabalhar! Mas você ouviu o que ele disse do meu novo livro, É muito bom, mas não vende, e a editora está perigosamente se aproximando do vermelho, o povo só está lendo facebook. Eu não confio nele, Donetti acrescentou –odeio editores em geral, sempre me fodem, e riu de si mesmo, o velho truque autocomplacente. Só que eu estou ficando uma pessoa má, ela diria à Bernadete. Impaciente. Beatriz, você viu a cara que o Chaves fez quando eu cheguei no restaurante? Aquele ar de surpresa meio enojada, tipo caí numa armadilha, eu acho que ele queria contratar a tradutora num pacote completo e agora chega esse namorado bundão, um escritor pentelho em fim de carreira, foi isso que ele deve ter pensado. Fiquei de vela ali, balançando a cabeça feito um tatu enquanto vocês falavam um olhando para o outro com brilho nos olhos. O jeito como ele inclinava a cabeça para a frente, a boca aberta e o queixo babado quase tocando o bife que sangrava no prato. Quando você vai crescer, Paulo Donetti? Que besteira é essa? Ele sabe que namoramos, chegou até mim por você, você mesmo sugeriu meu nome, aqui em São Paulo fico na sua casa, de onde você tirou esse... essa... você ficou maluco?!

    – O que você acha? –perguntava o editor.– O Brasil ganha a Copa? –e logo voltava à proposta de tradução, acenando com muito mais trabalho pela frente, o Donetti me disse que você é uma fera, e Beatriz (que quase encaixou com um sorriso talvez ele tenha dito noutro sentido, mas era melhor não brincar) aceitou imediatamente a tarefa, o preço da lauda era surpreendentemente bom para uma tradutora novata, 32 reais, um autor de impacto para pôr no currículo, e o selo da editora impunha respeito. Depois, aquele ciúme esquisito surgindo do nada, disfarçado em consciência política, Esse cara é de direita, Beatriz, você vai cair em desgraça na Universidade, ninguém lê Xaveste no Brasil, e ela não entendeu, você ficou maluco?! Por que indicou meu nome? Além de tudo, durante a Copa não se trabalha e eu ainda não sou funcionária pública, destino de todo letrado brasileiro –tenho de camelar, mas agora os dias se atropelavam e o texto– a escola de Frankfurt que, mesmo depois do terror de uma Europa esmagada pela devastadora erupção nazista, foi incapaz de desembarcar do próprio neoiluminismo jacobino ao vituperar, assim que, resgatada pelo odiado capitalismo, pisou o novo mundo, contra o jazz, a liberdade, o dinheiro, a vulgarização americana, a força transformadora do comércio, todos aristocratas saudosos [nostálgicos??] do inferno da melancolia, da flanagem bordel baudelariana de um marquês pessimista cuja única responsabilidade é o meu próprio desejo –Cabe esse meu aqui? Voltou duas folhas no livro. A revisão vai me dar mais trabalho do que a tradução, e Beatriz suspirou, um cansaço por antecipação já de manhãzinha, e conferiu quanto faltava ainda, mais oitenta páginas de letra miúda, o livro de lombada dura, duro de manter a página aberta, eu deveria ter tirado xerox, como o Paulo sugeriu, já que não existe um pdf original à disposição. Deixe de ser mesquinha, ele disse. Ele vive me corrigindo, ela pensou em contar para alguém, em um tribunal de acusação, e Beatriz olhou o teto, achando graça, fazer um bom relatório daquela relação doentia que eles levavam, ele sempre me achando defeito, curitibana pão-dura, ele brincou, e eu também, isso não se enquadra em alguma lei de injúria e difamação, por que eu ainda atendo telefone?! A minha vida anda estéril, uma máquina de dar aulas particulares, produzir e revisar textos e sonhar com o dia em que a sombra de Paulo Donetti –

    – O pão!

    CRISTOVÃO TEZZA, 64, é escritor, autor de "O Filho Eterno" (Record).

    ADAMS CARVALHO, 37, é ilustrador.

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