RESUMO Autor, que participou de Seminário Ilustríssima-FGV Direito (8/9), advoga contra a proposta do governo Temer de alterar garantias constitucionais de financiamento para a educação e a saúde. A Constituição seria vista como um entrave pelos reformadores, não como um conjunto de limites necessário às suas decisões.
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É na crise que o reconhecimento formal dos direitos fundamentais assume seu integral sentido, seu propósito constitucional. Porém, não é incomum, nem exclusivo da periferia mundial, a quebra de pactos básicos de convivência em tais contextos.
Os Estados Unidos, por exemplo, sucumbiram. O país ícone do liberalismo político respondeu aos ataques terroristas com massiva violação da privacidade de seus cidadãos, tortura como procedimento padrão de investigação e prisões em áreas de exclusão jurisdicional. Difícil imaginar qual valor "fundante", qual direito fundamental não foi radicalmente subvertido em nome de um único discurso dominante. Tudo em prol de uma racionalidade imediata, utilitarista, a provocar fraturas de difícil reparação.
Há um paralelo com a situação brasileira. Estamos por aqui à beira de também enveredar rumo à descaracterização dos direitos que nos definem como sociedade política, com três agravantes.
Primeiro porque no Brasil, distintamente, o foco são os direitos sociais, especificamente as garantias constitucionais desses direitos: seu financiamento. O pacto social de 1988 é característico do Estado Social. A ideia é tão simples quanto significativa: assegurar o progresso social e econômico das classes populares ao mesmo tempo em que se preserva o sistema capitalista de mercado.
Com tais pressupostos, o pacto básico não estaria imune aos conflitos distributivos. Assim, em tempo de expansão, todos ganham, em tempos de retração, todos perdem, ainda que perdas e ganhos sejam assimetricamente distribuídos. Como condição de integração, há direitos sociais básicos que devem ser preservados em quaisquer dos cenários.
O novo regime fiscal significaria uma moratória sobre esse pacto fundante. A PEC 241, que avança rapidamente no Congresso sob o patrocínio de Michel Temer e do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, determina a estagnação das despesas primárias do Orçamento Federal por nada menos que 20 anos (excluídas despesas financeiras e repasses obrigatórios aos entes federados). Retira, assim, dos próximos cinco presidentes seu principal instrumento, o orçamento público –e suspende as chamadas vinculações constitucionais para a educação e a saúde.
Ainda que a PEC não proíba remanejamentos internos ao orçamento estagnado, na prática, põe esses direitos difusos no mesmo ringue de pesos-pesados como o Judiciário, o Legislativo e os militares, para ficar nesses exemplos.
Não é difícil presumir quem ganhará a luta por recursos escassos. Em pé de igualdade jurídica, sem a proteção das vinculações constitucionais, estudantes, professores, profissionais de saúde e doentes perderão feio a briga contra juízes, promotores, deputados e quadros das Forças Armadas. Até as projeções otimistas, baseadas na manutenção do patamar atual de gasto, anunciam o desastre.
Não é inédita nossa iminente tragédia, sabemos bem o quanto custa retomar um pacto constitucional aceitável aos diversos campos sociais com interesses distintos e comumente contraditórios. A segunda agravante, portanto, é que, diferentemente da estabilidade constitucional estadunidense, novamente estamos a um passo de mais uma descaracterização constitucional, em curtíssimo espaço de tempo.
A história das vinculações constitucionais de recursos para a educação é intimamente ligada a avanços democráticos. Surgiu na Constituição de 1934 por influência direta daquele que é o mais rico, plural e influente movimento em defesa da educação de nossa história, a Escola Nova de Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Cecília Meireles, dentre tantos.
O propósito era assegurar recursos em fluxo contínuo à educação, dados o atraso educacional brasileiro e a natureza das políticas públicas nesse campo, que requerem continuidade ao longo de gerações para produção de resultados duradouros. Em 1937, a constituição autoritária outorgada por Getúlio Vargas eliminou tal vinculação. Com a redemocratização, o propósito escolanovista retorna ao patamar temporariamente perdido na Constituição de 1946.
O ciclo se repete em 1967, quando a ditadura cívico-militar impõe nova exclusão. Em 1983, a chamada Emenda Calmon é uma aclamada marca de redemocratização, ao reestabelecer na constituição a vinculação para o ensino no Orçamento Federal. O patamar é elevado a 18% da receita líquida de impostos (algo em torno de 4% do Orçamento total da União nos últimos anos), estágio em que se encontra atualmente.
A história diz que assegurar recursos mínimos para a educação na constituição é conquista democrática. A proposta de Temer, ao contrário, quer fechar um novo ciclo, colocando-o ao lado dos autoritários do passado. Nesse ponto articula-se a terceira agravante.
Há fundadas dúvidas quanto ao grau de legitimidade política do governo que impulsiona essa radical revisão. Ainda que não se considere a polêmica caracterização do processo que o levou ao poder, é certo que a agenda Temer inova em matéria que compõe o próprio cerne da disputa eleitoral e do voto, a concepção de Estado e de políticas públicas.
Mas isso não é um problema para o governo e seus apoiadores. Sob o enfoque governista, a ausência de referendo eleitoral é, na crua realidade, uma oportunidade sem igual de atacar o problema do crescimento e da crise fiscal com base nos pressupostos dos economistas afins, sem necessidade de discutir e projetar alternativas. Desvinculados de qualquer constrangimento eleitoral, o governo e seus apoiadores estariam livres para adotar as medidas amargas. Sequer seriam medidas impopulares; mais correto chamá-las apopulares.
Assim, o sucesso dessa iniciativa do constitucionalista Temer ironicamente depende de sua capacidade de neutralizar o direito. Não o direito vulgar dos códigos e portarias, que está em toda parte, mas o direito constitucional. Não qualquer direito constitucional, mas sua versão mais nobre, composta pelos limites materiais e procedimentais que se vinculam aos direitos e garantias fundamentais.
Tratam-se de cláusulas rígidas, que não podem ser alteradas em favor de uma menor proteção e sobre as quais não pode se omitir o Estado. Há aí o que o jurista italiano Luigi Ferrajoli caracteriza como uma "esfera do indecidível".
FASCÍNIO
O filósofo norueguês Jon Elster recorre a uma conhecida passagem da literatura clássica para explicar o significado da rigidez constitucional no campo dos direitos fundamentais. O herói Ulisses, da "Odisseia", determina voluntariamente que o amarrem ao mastro da embarcação e tapem os ouvidos com cera para que não sucumba ao mortal canto de duas sereias, cujo fascínio é imediato. "Se eu insistir convosco para que me solteis, apertai-me, então, com laços mais numerosos" (livro 12).
A constitucionalização dos direitos fundamentais, sejam civis, políticos ou sociais, visa protegê-los em caráter permanente. É esperado que contrafluxos políticos e econômicos tencionem tal permanência. É justamente nesses momentos que o direito constitucional é posto à prova. É da natureza das metas de longo prazo, principalmente em contextos de crise, serem confrontadas por maiorias políticas ávidas por ganhos imediatos e entorpecidas pelo medo da perda de vantagens e privilégios. Produz-se assim uma hegemonia míope que, desgarrada dos pactos de longo prazo, deixa de perceber o sentido do direito e da constituição.
Neutralizar o direito também passa por suspender as alternativas de reformas econômicas que, diferentes do novo regime proposto na PEC 241, estariam em conformidade com os objetivos declarados da Constituição. A questão que se coloca é saber por que, sendo controverso o debate técnico-científico sobre as melhores soluções econômicas e sendo evidentes aquelas que de cara vão na contramão do direito constitucional, opta-se por estas, com radicalidade e sem qualquer consideração sobre a tragédia social e econômica de longo prazo que anunciam.
Chega a ser medíocre a proposta de um limite global e de cortes orçamentários horizontais. Por que só os gastos primários, excluídas as despesas financeiras com endividamento e operações cambiais? Por que não uma reforma tributária de caráter distributivo que corrija distorções, tributando razoavelmente renda e propriedade e minimizando a tributação do consumo de massas? Por que tratar como se fossem iguais carreiras notoriamente privilegiadas e servidores com baixo salário relativo? Por que não se elevar o investimento em educação como forma de sair da crise e criar bases para o desenvolvimento em uma economia complexa?
Não há debate sobre alternativas porque a Constituição é vista como um entrave pelos reformadores, não como um conjunto de limites necessários às suas decisões. Assim, antes mesmo de reformada, já aparenta descartada. Resta saber qual a capacidade de resistência do Legislativo e dos órgãos jurisdicionais de controle cuja tarefa é preservar o propósito constitucional. Estarão eles alienados de suas funções e entorpecidos sob o canto das sereias ou amarrados ao mastro do projeto de civilização que é o Estado Social?
SALOMÃO BARROS XIMENES, 37, é professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC.