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    Texto defende professores que lutam contra a exploração do capital

    JORGE BARCELLOS

    16/09/2016 13h00

    Parafraseando Gustavo Ioschpe, todo cidadão brasileiro deveria saber que nossos políticos estão usando a educação para doutrinamento político e ideológico através do projeto Escola Sem Partido, do qual Ioschpe é um dos ideólogos mais ativos, e que essa postura traz danos nefastos à formação crítica das novas gerações.

    Nas escolas, ao contrário do que diz Ioschpe, tanto públicas quanto particulares, estão presentes tanto os viéses filosocialista quanto o liberal. A diferença é que, enquanto predomina a orientação voltada para a formação cidadã nas escolas públicas, predomina a visão voltada para o mercado nas escolas particulares, com raras exceções para ambos os lados. A divisão é a mesma que correu nos debates sobre os objetivos que levaram à formulação dos princípios da educação na LDB (Lei de Diretrizes e Bases): ou a educação nacional forma cidadãos conscientes e críticos ou se volta a educação para o mercado. Ioschpe se indigna que os educadores valorizem tão pouco o mercado porque no seu universo não há outra instituição a orientar a formação geral dos cidadãos.

    Os professores partidários da Escola Sem Mordaça lutam contra a exploração do capital que faz vítimas por todos os lados. Defendem a conscientização dos cidadãos como objeto da educação porque têm como objetivo a redução das diferenças de classe impostas pela exploração do capital para auferir lucro. O ponto que Ioschpe oculta em seu discurso é justamente este: entre as novas técnicas de poder do capitalismo estão aquelas que influenciam a vida psíquica para transformar o trabalhador em força de produção. Os neoliberais, entre os quais inclui-se Ioschpe, não desejam mais as antigas técnicas de dominação para o capital e seus instrumentos de opressão, pretendem um poder sedutor e inteligente no qual o sujeito submetido não tem consciência da sua submissão. Combatem a eficácia do discurso da doutrinação da esquerda que denuncia que o indivíduo livre desejado pelo neoliberalismo oculta na realidade a exploração. Por isso, a direita tem necessidade de investir no horizonte da escola.

    A reação da direita aos processos de democratização e expansão dos direitos ocorre em todos os níveis: político, cultural, artístico e educacional. O Escola Sem Partido é um retrocesso a conquistas dos direitos sociais e sua transformação em objeto de ensino: não é possível que o leitor acredite que "promover positivamente a imagem da mulher", a "formação do cidadão do século 21 pronto a aprender como bem utilizar direitos humanos" sejam princípios orientadores negativos para a formação do aluno. O que revolta Ioschpe está ali, em letras garrafais, pois nessa concepção o que está em jogo é uma sociedade "mais justa e solidária" exatamente o que é inconcebível na sociedade do rendimento, onde o que importa é justamente o lucro que advém da exploração do capital sobre o trabalho.

    Para Ioschpe, conscientização é sinônimo de doutrinamento. O que Ioschpe chama de "praguejamento" contra elites é na realidade a crítica a um sistema produtor de desigualdades, justamente é o neoliberalismo e o jugo capitalista que é responsável pela produção dos cidadãos que Ioschpe diz que têm "menos condições socioeconômicas". Não é à toa que Ioschpe evoca a neutralidade científica proposta por Weber: a concepção weberiana de educação é aquela que visa preparar o comportamento do aluno para se submeter à sociedade, não é voltada para a educação como o exercício da cidadania e sim para formar o especialista que o capital precisa. Ioschpe oculta o fato de que Weber posteriormente revisou sua posição em relação ao lugar da educação e a política no texto "Os Rumos da Educação", no qual expressou seu desconsolo em relação à racionalização e liberdade submetidas ao pleno desenvolvimento da especialização, exatamente o quer o capital com a educação. Weber manifestou ali justamente sua desilusão com o capitalismo, que reduzia tudo, "inclusive a educação, a mera busca por riqueza material e ascensão social".

    O curioso é que justamente Weber, que Ioschpe escolhe como apoio teórico, aponta para o caráter ampliado dos agentes educativos, que permite incluir, além dos professores, sacerdotes, pais, guerreiros, filósofos, escritores no campo dos educadores, e até mesmo os economistas. Mas se para Weber deveria ser assim porque a lógica do capital é implacável e impossível de ser vencida, para Marx, ao contrário, o capitalismo é a origem da escravização do ser humano pelo trabalho mas a educação é, justamente, o espaço de sua possibilidade de emancipação.

    Nunca se tratou de expressar o ponto de vista político do professor e muito menos de fazer política. Para o professor, trata-se de uma tomada de posição: ou se está a favor do aluno ou do capital, trata-se de revelar o mundo exatamente como ele é, não o lugar da liberdade como sugere os arautos do neoliberalismo, entre eles Ioshcpe. Trata-se de mostrar ao aluno que vivemos uma fase histórica particular onde a liberdade dá lugar a coações, que o mundo para o qual a escola é pensada por aqueles que compartilham a visão de Ioshcpe, do Escola Sem Partido, é o de formar sujeitos do rendimento que se vejam livres quando são na realidade escravos absolutos porque, sem qualquer senhor, se exploram a si mesmo de forma voluntária.

    Para o sujeito neoliberal atual, é fundamental a formação de jovens como empresários de si mesmos, incapazes de estabelecer relações com os outros livres de qualquer finalidade. "Entre empresários não surge uma amizade independe de quaisquer outros fins. E contudo, ser livre significa estar entre amigos", diz Byung Chul Han em "Psicopolítica". Liberdade é uma palavra relacional, só somos livres numa coexistência, ao contrário do que deseja o regime neoliberal que nos conduz ao isolamento total, sem vínculos de classe social pois, para o capital, só os interesses individuais importam, daí o outro componente de sua ideologia, a meritocracia.

    O professor que faz uma análise crítica do neoliberalismo não é um traidor, ao contrário, é um amigo, quer que seu aluno conquiste sua liberdade verdadeira. A única parcialidade permitida é a ideia de que o professor está do seu lado, do lado do aluno em sua luta contra a exploração do capital, justamente o que fortalece a cultura escolar.

    No mundo de Ioschpe, o "universo acadêmico" e "mundo real" não podem se comunicar, e essa recusa é exatamente a revelação de uma subordinação, de que a educação que pretendem os educadores do projeto Escola Sem Partido é voltada para a subordinação, para a perda da liberdade sob a ilusão da prática da liberdade. A única saturação ideológica que emergiu no Brasil atual é protagonizada pela ascensão do discurso, ideologia e projeto de direita em nosso país, que invade a sala de aula.

    Concordamos com Ioschpe, nossa escola se mostrou incapaz, mas em relação a quê? A cumprir sua missão de formar cidadãos críticos, basta olhar as massas que foram as ruas criticando o governo Dilma, responsável pela expansão de inúmeros direitos. O que conquistaram: redução de políticas públicas, redução de investimento em educação, reforma da previdência e redução dos direitos trabalhistas. Sim, os professores críticos não tiveram sucesso porque muitos alunos seus ainda se transformaram em analfabetos, analfabetos políticos. Ora, não é notável que um componente da ideologização neoliberal seja, justamente, não se reconhecer enquanto tal? É para isso que serve o discurso da neutralidade da educação, para encobrir o fato de ser uma educação que toma uma posição à direita no espectro político. E tiveram sucesso.

    O que condena nossa sociedade à pobreza e à desigualdade não é o fracasso educacional blindado por ideologias, é formar cidadãos que, por ausência de crítica, cedem à vontade dos empresários de plantão, dos capitalistas, dos donos de empresas, dos empregadores e detentores do capital. Não é que queiramos alunos que se rebelem contra o capital simplesmente. Queremos que desejem uma sociedade nova e, na sua impossibilidade momentânea, que sejam capazes de conhecer, ter uma visão crítica, negociar, rejeitar a exploração e lutar por seus direitos. Qual é a proposta de Ioschpe? Que pais se revoltem contra os professores, que eles assumam o lugar do capital e cuspam para fora da escola seus críticos. Nesse sentido, a posição de Ioschpe é um verdadeiro "cavalo de Troia": ela oculta, sob uma posição democratizante, uma postura que chega a ser nazista, a de que cada pai, que cada estudante, denuncie o professor que critica a sociedade neoliberal. Nisso, a posição que Ioschpe assume tem um nome: fascista.

    JORGE BARCELLOS é doutor em educação, chefe da ação educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e integrante do movimento Escola Sem Mordaça do Rio Grande do Sul.

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