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    Leia trecho de romance inédito de Elena Ferrante

    ELENA FERRANTE
    tradução MARCELLO LINO
    ilustração MARCOS GARUTI

    02/10/2016 02h03

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é o quarto capítulo do romance "A Filha Perdida", de Elena Ferrante, pseudônimo do(a) escriba misterioso(a) que assina a elogiada tetralogia napolitana. O livro, de 2006 e inédito no Brasil, sai neste mês pela Intrínseca, que também lança um volume infantil de Ferrante, "Uma Noite na Praia".

    Marcos Garuti

    A jovem mãe e sua filha eu só notei mais tarde. Não sei se estavam ali desde o meu primeiro dia na praia ou se apareceram depois. Nos três ou quatro dias após minha chegada, só prestei atenção a um grupo um pouco barulhento de napolitanos: crianças, adultos, um homem de uns 60 anos com expressão cruel, quatro ou cinco meninos que se enfrentavam ferozmente dentro da água e fora dela, uma mulher grande com pernas curtas e seios enormes, que tinha menos de 40 anos, talvez, e se deslocava com frequência da praia ao bar e vice-versa, arrastando com dificuldade uma barriga de grávida, o arco grande e nu alongado entre as duas peças do traje de banho. Eram todos da mesma família, pais, avós, filhos, netos, primos, cunhados, e riam com gargalhadas ruidosas. Chamavam-se pelo nome com gritos arrastados, lançavam uns aos outros frases exclamativas ou conspiratórias e, às vezes brigavam: uma família grande, semelhante àquela da qual eu fizera parte quando criança, as mesmas brincadeiras, as mesmas pieguices, as mesmas fúrias.

    Um dia, levantei os olhos do livro e as vi pela primeira vez: a mulher extremamente jovem e a menina. Estavam voltando do mar em direção ao guarda-sol; ela, com não mais do que 20 anos, a cabeça baixa, e a garotinha, de três ou quatro anos, fitando-a de baixo, encantada, enquanto segurava uma boneca da mesma maneira que uma mãe carrega uma criança no colo. Conversavam tranquilamente, como se apenas elas existissem. De sua barraca, a mulher grávida gritava algo na direção das duas, irritada, e uma senhora grande e grisalha, de uns 50 anos, vestida dos pés à cabeça, talvez a mãe, dava acenos descontentes, desaprovando não sei o quê. Mas a moça parecia surda e cega, continuava falando com a menina e saía do mar com passos comedidos, deixando na areia a sombra escura das pegadas.

    Elas também faziam parte da família grande e barulhenta, mas a jovem mãe, vista assim à distância, com seu corpo esbelto, o maiô escolhido com muito bom gosto, o pescoço esguio, a cabeça graciosa e os cabelos longos e ondulados de um negro brilhante, o rosto indiano com as maçãs salientes, as sobrancelhas marcadas e os olhos oblíquos, pareceu-me uma anomalia naquele grupo, um organismo que misteriosamente fugira à regra, a vítima, agora conformada, de um sequestro ou de uma troca de bebês.

    A partir daquele momento, adquiri o hábito de olhar de vez em quando na direção delas.

    A garotinha tinha algo em desarmonia, mas eu não sabia o quê, se uma tristeza infantil, talvez, ou uma doença silenciosa. Todo o rosto pedia permanentemente à mãe que ficassem juntas: uma súplica sem prantos nem caprichos, e a mãe não se esquivava. Certa vez, notei a ternura com que passava protetor solar na filha. Em outra ocasião, impressionou-me o tempo que mãe e filha permaneciam juntas na água sem pressa alguma, a mãe apertando a menina contra si, a menina com os braços em volta do pescoço da mãe. Riam entre elas, aproveitando o prazer de sentir um corpo no outro, de roçar os narizes, de espirrar água uma na outra, de dar beijinhos uma na outra. Uma vez, eu as vi brincarem juntas com a boneca. Divertiam-se muito: vestiam-na, despiam-na, fingiam untá-la de protetor solar, davam-lhe banho dentro de um baldinho verde, secavam-na com a toalha, esfregando-a para que não ficasse com frio, apertavam-na no peito como se a estivessem amamentando ou entupiam-na de papinhas de areia, mantinham-na ao sol ao lado delas, deitada na mesma toalha das duas. A moça, já bonita por natureza, distinguia-se com aquele seu jeito de ser mãe; parecia não querer nada mais além da menina.

    Não que ela não estivesse bem integrada àquela grande família. Conversava muito com a mulher grávida, jogava cartas com alguns jovens da sua idade, bronzeados de sol, primos, acho, passeava à beira-mar com o homem idoso de ar feroz (seu pai?) ou com jovens mulheres ruidosas, irmãs, primas, cunhadas. Não me pareceu que tivesse um marido ou alguém que fosse visivelmente o pai da criança. Porém notei que todos os integrantes da família cuidavam dela e da pequena com afeto. A mulher grande e grisalha com seus 50 anos a acompanhava ao bar para comprar sorvete para a menina. Os garotos, a uma chamada brusca dela, interrompiam as brigas e, ainda que bufando, iam buscar água, comida, o que ela precisasse. Assim que mãe e filha se afastavam poucos metros da costa em um bote vermelho e azul, a mulher grávida gritava Nina, Lenù, Ninetta, Lena, e corria, ofegando, em direção à orla, alarmando até o salva-vidas, que se levantava de um salto para observar melhor a situação. Certa vez, dois sujeitos queriam puxar conversa e se aproximaram da moça; os primos logo intervieram e começaram uma série de empurrões e palavrões que quase terminou em socos.

    Durante algum tempo, eu não soube se era a mãe ou a filha que se chamava Nina, Ninù, Ninè, os nomes eram muitos e foi difícil, em meio à densa trama de chamados, chegar a uma conclusão. Depois, de tanto ouvir vozes e gritos, entendi que Nina era a mãe. Com a menina foi mais complicado, e no início me confundi. Achei que ela tivesse um apelido tipo Nani ou Nena ou Nennella, mas depois compreendi que aqueles eram os nomes da boneca, da qual a menina nunca se separava e à qual Nina dava atenção como se estivesse viva, quase uma segunda filha. A menina na verdade se chamava Elena, Lenù; a mãe sempre a chamava de Elena, e, os parentes, de Lenù.

    Não sei por quê, mas anotei aqueles nomes no meu caderno, Elena, Nani, Nena, Leni –talvez eu gostasse da forma como Nina os pronunciava. Ela se dirigia à menina e à boneca em uma cadência dialetal agradável, aquele napolitano que eu adoro, afetuoso nas brincadeiras e nos momentos de alegria. As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto. Lembro-me do dialeto na boca de minha mãe quando perdia a cadência meiga e gritava conosco, intoxicada pela infelicidade: não aguento mais vocês, não aguento mais. Ordens, gritos, insultos, um prolongamento da vida nas suas palavras, como um nervo lesionado que, assim que é tocado, arranca junto com a dor qualquer compostura. Em uma, duas, três ocasiões ameaçou a nós, suas filhas, dizendo que iria embora, vocês vão acordar de manhã e não vão mais me encontrar. Eu acordava todos os dias tremendo de medo. Na verdade, ela sempre estava lá; nas palavras, vivia sumindo de casa. Aquela mulher, Nina, parecia serena, e eu senti inveja.

    ELENA FERRANTE é o pseudônimo italiano que assina a tetralogia napolitana, da qual faz parte "A Amiga Genial" (Biblioteca Azul).

    MARCELLO LINO, 49, é tradutor e intérprete de italiano e inglês.

    MARCOS GARUTI, 46, é ilustrador de revistas e livros.

    Edição impressa

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