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    Primeira brasileira a dirigir Comédie-Française adapta filme de Renoir

    FERNANDO EICHENBERG

    30/10/2016 02h04

    RESUMO Depois de colher elogios da crítica por montagens em que funde teatro e cinema, a encenadora Christiane Jatahy, 48, prepara versão de "A Regra do Jogo" (1939), filme clássico de Jean Renoir, para a companhia mais antiga do mundo. "Tudo é criado para que o inesperado aconteça", diz sobre seu método.

    Christiane Jatahy observa os muros despidos de sua morada provisória em Paris e confidencia, desolada: "Preciso continuar construindo minhas estantes. Sempre tive um prazer enorme em ficar admirando uma biblioteca. Adoro a ideia de paredes repletas de livros. É algo que me apazigua".

    Foi num bálsamo literário que a carioca nascida em 1968 passou a primeira parte de sua infância, solitária, imersa em títulos que estimularam sua imaginação e forjaram sua "sensibilização e o olhar para o mundo". No segundo ato, até os 14 anos, a família avolumou, e o aspecto coletivo se afirmou pelo teatro. Com tios, primos e outros parentes, encenava peças para serem apresentadas nas celebrações familiares, em aniversários ou festejos natalinos.

    Na juventude, veio a descoberta da filosofia e do cinema, com sessões ininterruptas em cineclubes das 14h às 22h. Adulta, passou a criar seus próprios espaços cênicos, mas, principalmente, a quebrar barreiras.

    Hoje, aos 48, impõe-se com seus espetáculos teatrais singulares nos palcos da Europa e se prepara para aportar nos Estados Unidos. Sua assinatura de criação é a constante interação entre cinema e teatro, numa mistura de realidade e ficção assumidamente política –sem ser panfletária– movida pela radical remoção das fronteiras entre a cena e o público.

    "O receptor é o grande foco do meu trabalho. O ator afeta o espectador, que afeta o ator. É uma retroalimentação contínua, porque penso que o teatro é o que está acontecendo entre as pessoas. Tudo é criado para que o inesperado aconteça. E é o 'acidente' que vai fazer com que seja uma relação viva e dinâmica", explica, acomodada em seu apartamento temporário no Centquatre, badalado centro cultural da capital francesa que a acolhe como artista associada desde 2013.

    Seu próximo projeto é coerente com suas escolhas audaciosas: Christiane Jatahy será a primeira brasileira a dirigir uma criação na Comédie-Française, a companhia teatral mais antiga do mundo, fundada em 21 de outubro de 1680 por decreto do rei Luís 14. A estreia está marcada para 4 de fevereiro de 2017, com o espetáculo "A Regra do Jogo", baseado no filme homônimo de Jean Renoir (1939), considerado um dos monumentos do cinema francês.

    A montagem não seguirá os ditames do teatro clássico que é ainda hoje a marca da vetusta instituição. Jatahy integra a cota de artistas contemporâneos convidados a oxigenar as encenações da casa e ocupará a sala Richelieu, o espaço mais nobre da companhia (são três ao todo).

    TRILOGIA

    Sua mais recente trilogia, em que testa novas permutações na relação entre palco e plateia e na fusão de cinema e teatro, recebeu prêmios no Brasil e elogios da crítica em festivais internacionais. "Julia", de 2011, é uma adaptação à realidade brasileira de "Senhorita Julia", de Strindberg, numa aposição de teatro e cinema (tanto ao vivo quanto pré-gravado).

    "E se Elas Fossem para Moscou?", de 2014, criada a partir d' "As Três Irmãs", de Tchékhov, evoca utopias e questiona a capacidade de mudança num filme-performance construído em dois espaços entrelaçados, onde o público pode escolher seu ponto de vista da trama (é possível espiar o elenco em carne e osso "in loco" ou espreitá-lo via projeção numa sala escura anexa –com direito a cenas exclusivas, fora do raio de visão da plateia teatral).

    "A Floresta que Anda", de 2015, encerra o ciclo numa reflexão sobre os atuais sistemas de dominação no mundo, a ganância e a usurpação do poder inspirada em "Macbeth", de Shakespeare. Aqui, tudo se articula em torno de quatro telas gigantes e de uma filmagem, com edição e projeção feitas no decorrer da apresentação.

    Na Comédie-Française, a diretora não gozará da mesma liberdade que pautou suas obras precedentes. O elenco foi selecionado entre a trupe fixa da casa. Além disso, o tempo reservado aos ensaios, com início neste mês (quando ela muda novamente de endereço), será mais curto do que o habitual. A atuação de Jatahy se "limitará" à concepção e à realização do espetáculo; ela não fará interferências (como a "montagem" ao vivo de cenas de seu "Corte Seco").

    O espaço, um palco italiano (em que o público fica de frente para a encenação), não é idealmente modulável. Nada que a insolência da carioca não busque subverter.

    "Às vezes, os limites existem não para serem quebrados, mas para serem transformados, e isso também é político", afirma. "O grande radicalismo na Comédie é juntar cinema e teatro. O público vai dizer: 'Estou na casa do teatro, mas vendo um filme'. E de fato será feito um filme naquele espaço. Mas depois o teatro vai aparecer."

    DESVIO

    Éric Ruf, diretor da Comédie, conta ter saído "extasiado" de uma apresentação de "Julia" no espaço Centquatre. Seu interesse pela brasileira cresceu depois de uma sessão de "E se Elas Fossem para Moscou?" na Normandia.

    "Ela é especialista em fazer o maior desvio possível para atingir o centro mais puro e atual das obras. Na liberdade que assume com os diálogos e com a narração, e na aparente imprecisão de sua iniciativa, ela alcança algo extremamente preciso, pertinente e verdadeiro, numa nova leitura dos textos", avalia ele.

    Apesar do entusiasmo, Ruf não esconde certa inquietude com a inédita colaboração franco-brasileira. "Não sei o que vai dar. Sua radicalidade nem sempre me tranquiliza quando penso no público da companhia. Aqui as margens são mais estreitas, e por enquanto ela finge não entender isso [risos]. Sua metodologia de representação é bastante contemporânea, algo complexo para nós. Por outro lado, ela me dá uma confiança extrema pela maneira atenciosa como trata o espectador", pondera.

    Também ator e diretor, ele lembra ter tecido para Jatahy a seguinte metáfora sobre a inclinação tradicionalista do público da casa: "'Aqui na Comédie, você pode dar golpes de judô nas pessoas, mas tem de acompanhá-las na queda sobre o tatame. Se você jogá-las por cima do ombro e deixá-las caírem sozinhas, elas vão se machucar e não voltarão.' Christiane possui todos os instrumentos necessários para deixar a plateia desconfortável, mas sou fascinado por sua benevolência".

    Jatahy confirma suas boas intenções em relação ao espectador e seu desinteresse por um teatro "agressivo e violento": "Acho que o público tem todo o direito de ser público. Detesto certo tipo de teatro interativo. Mesmo em 'A Floresta', em que o espectador participa de muitas coisas, trata-se de uma performance invisível. Primeiro, porque as pessoas têm escolha, é algo sugerido, e quem quer vai. E elas estão no meio de outras pessoas, ninguém sabe se estão ou não fazendo parte do espetáculo. Foi o lugar mais extremo a que já cheguei na relação com o público".

    MUDANÇAS

    Em sua versão de "A Regra do Jogo", Jatahy assegura ter mantido inalterados "98%" dos diálogos escritos por Jean Renoir e Carl Koch no roteiro inspirado em "Os Caprichos de Marianne", de Alfred de Musset, e "As Bodas de Fígaro", de Pierre-Augustin de Beaumarchais. O filme de Renoir, ambientado às vésperas da Segunda Guerra, trata das relações sociais entre patrões e empregados.

    A intervenção da encenadora se dá em outro registro. Christine de la Chesnaye, personagem austríaca no filme, será no palco uma marroquina encarnada por Suliane Brahim. "É a única atriz de origem árabe da Comédie, e acho isso muito significativo", ressalta ela.

    Já o aviador André Jurieux, recordista na travessia do Atlântico, é transformado por Jatahy em um navegador que constrói um veleiro e se aventura no Mediterrâneo. "Em seu itinerário, André se defronta com um barco de imigrantes, que afunda. Ele os salva e se transforma em herói. E esse homem que salva um barco de refugiados porque tem uma preocupação humanitária morre no final", adianta ela.

    As alterações na história não param por aí: "O [Édouard] Schumacher [guarda de caça da propriedade rural que é o cenário principal da ação], um alemão, na minha versão é um africano, um ator negro, o Bakary Sangaré. O segurança da casa, negro, mata por acidente o herói, porque é apaixonado por uma marroquina. Estamos falando sobre o agora, e sem mudar os diálogos. Por isso queria montar esse texto. Acho importante que essas coisas sejam ditas".

    Apesar de criar em território estrangeiro, Jatahy terá a segurança da escolta de colaboradores fiéis "importados" do Brasil: o cenógrafo Marcelo Lipiani e o diretor de fotografia Paulo Camacho. Talvez venha daí o seu aparente destemor:

    "Podemos fazer uma coisa com tanta qualidade que as pessoas vão aderir. Os espaços têm de continuar sendo vivos, dinâmicos. O teatro não pode ter este lugar de museu".

    A carioca define sua trajetória teatral como um novelo. "Digo novelo e não linha porque as criações se embolam e se tocam umas nas outras. 'Julia' só existe porque fiz 'A Falta Que Nos Move' (2005), quando assumi o lugar do cinema na minha vida. E também porque fiz 'Conjugado' (2004) [monólogo que abriu sua trilogia anterior, 'Uma Cadeira para a Solidão, Duas para o Diálogo e Três para a Sociedade']."

    No currículo alentado figuram ainda a trilogia formada por "Peter Pan" (1996), "Alice" (1998) e "Pinóquio" (1999); "Carícias" (2001), de Sergi Belbel –"um texto violento pelo qual fui super mal compreendida na época"–; e a ópera "Fidelio" (2015), de Beethoven, com direção musical do maestro Isaac Karabtchevsky, no Theatro Municipal do Rio –"um exercício para o que farei na sala Richelieu".

    ODÉON

    Além do Centquatre, Jatahy foi convidada em 2015 a integrar a equipe de colaboradores do prestigiado teatro Odéon (coprodutor, com o Sesc-SP, da turnê europeia de "A Floresta"), cujo palco principal acolhe com frequência produções do encenador norte-americano Bob Wilson e trabalhos protagonizados pela atriz Isabelle Huppert.

    É para essa instituição que a brasileira criará um espetáculo na temporada 2017-2018. Stéphane Braunschweig, diretor da casa, já a havia convidado a apresentar seus espetáculos quando estava à frente do teatro La Colline, também em Paris.

    Seu primeiro contato com a obra de Jatahy foi no outono de 2014, em "E se Elas Fossem para Moscou?". "Ela tem uma maneira muito forte e perturbadora de se dirigir ao público e consegue um equilíbrio magnífico entre o trabalho formal, o uso da tecnologia, e aquele com a emoção e com os atores. Sou muito sensível a esse último aspecto, e o engajamento das três atrizes em "Moscou?", principalmente o da Julia Bernat, é muito impressionante."

    Aos 26 anos, Bernat é a única intérprete escalada para todas as peças da última trilogia de Jatahy. Para ela, a diretora é um pouco "bruxa". Dotada de uma intuição incomum, sempre consegue levar o ator aonde deseja: "A Chris gosta do ator em estado de risco. Você tem de estar disposta a se expor e a viver o risco. É sofrido e, ao mesmo tempo, é bom", descreve a atriz.

    O "método Jatahy" combina empréstimos de vários outros. "Ela trabalha com muito improviso, com os sistemas dramatúrgicos do espanhol José Sanchis Sinisterra [de quem montou em 2006 "Leitor por Horas"], que usamos muito em 'Moscou?'. E incorpora também o 'viewpoints', mas do jeito dela, que tem a ver com reagir o tempo inteiro no presente", elenca Bernat.

    Liquidificadas, essas referências desembocam, no teatro de Jatahy, numa fixação pela "resposta, mais do que [pela] ação, o que exige que os atores estejam muito presentes em cena". No fim, resume ela, "é um trabalho sobre a linguagem".

    POLÍTICA

    Braunschweig destaca a forte dimensão política das montagens da brasileira. E aponta como exemplo o segmento final de "A Floresta", quando as quatro telas sobre as quais é projetado o filme protagonizado pelos espectadores avançam em direção à plateia: "São nossos corpos, nossos rostos, somos nós a floresta que avança e que vai destruir Macbeth. De certa forma, isso quer dizer que temos o destino em nossas mãos. Talvez seja uma utopia pensar que possamos prosseguir todos juntos, mas é também um tipo de apelo para que não nos deixemos absorver pela vontade de destruição que há por todo lado".

    Jatahy endossa essa leitura: "É uma questão de olhar para um mundo tão aparentemente distópico e sombrio, e não somente assumir responsabilidades, mas também pensar que o movimento de transformação é coletivo".

    Quando a conversa se volta para as contingências do atual cenário político brasileiro, o tom da fala da encenadora muda: "Estamos vivendo um momento muito perigoso, de radicalismos. E a palavra radicalismo, aqui, não é boa, porque sinaliza desrespeito. É um debate sem escuta, o que leva a extremismos. Não creio que o que estava sendo feito pelo PT era suficiente, mas acho que se está falando de uma questão democrática, sobre olhar e saber da responsabilidade social que se deve ter neste país".

    Estendendo a vista para além das fronteiras brasileiras, ela condena a supremacia de um "sistema econômico desumano". "'A Floresta' fala sobre isso. As coisas estão explodindo. Tenho algo inerente que é um certo otimismo, uma esperança, pois o medo é paralisador. Mas estamos vivendo uma época bem estranha. Às vezes, recebo pedidos de projetos tipo para o ano 2021. Como estará o mundo em 2021? Não pensava nisso antes. Hoje, sim."

    Em Paris ou no Rio, num conturbado 2016 ou num incerto 2021, Christiane Jatahy cumpre religiosamente rotina insólita: construir estantes de livros em suas residências volantes e destruir fronteiras artísticas pelos palcos do mundo.

    FERNANDO EICHENBERG é jornalista em Paris e autor de "Entre Aspas: Volume 2" (L&PM).

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