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    13/11, uma ferida ainda acesa na capital francesa

    ISABEL JUNQUEIRA

    13/11/2016 02h04

    "O espetáculo não está pronto, então talvez eu tenha que interrompê-lo. Espero que isso não aconteça!", avisou no domingo (6) Ariane Mnouchkine, momentos antes do segundo ensaio aberto de "Une Chambre en Inde" (um quarto na Índia), mais recente espetáculo do Théâtre du Soleil.

    Até aí, tudo normal: não é a primeira (nem deve ser a última) estreia informal da famosa trupe de teatro francesa que acontece semanas depois da data prevista e com sua diretora dando ordens ao elenco no meio do público, direto de uma mesa posicionada no centro da fila H.

    No entanto, desde a montagem anterior ("Macbeth", que estreou em abril de 2014), sabe-se bem que Paris e a França não são as mesmas. Conhecido pelo seu repertório engajado e em sintonia com a atualidade, o Soleil pode até ter escolhido um quarto na Índia como cenário da nova peça, mas as angústias e incompreensões dos personagens em cena vêm principalmente do contexto pós-"Charlie Hebdo" e 13 de novembro de 2015.

    Num enredo febril, limítrofe entre sonho (ou pesadelo) e realidade, um grupo teatral se encontra num vilarejo indiano em busca de inspiração para seu próximo projeto, ao mesmo tempo em que vivencia à distância o luto dos atentados na França. Um caso de arte imitando a vida: pouco tempo depois dos atentados do fim de 2015, Mnouchkine e seus colegas conceberam coletivamente o texto a partir de improvisações, durante temporada da Escola Nômade do Soleil em Puducherry, cidade no sul da Índia –o país já havia alimentado o imaginário da companhia em espetáculo de 1987.

    TRAGICÔMICA

    Na "newsletter" do Soleil publicada meses atrás, Mnouchkine havia indicado o tom do que estava por vir: "o mais corajoso e belo seria fazer o público rir de seus medos". Já na fila para entrar no teatro, o demorado controle de segurança conseguia arrancar um sorriso de todos. Já na pele dos engraçados policiais indianos da peça, os atores inspecionavam as bolsas.

    Personagem principal e líder da trupe fictícia depois do seu diretor enlouquecer, Cornélia tem delírios –alguns aterrorizantes, outros cômicos– com torturadores e jihadistas, mas também se encontra, em suas visões, com Shakespeare e Tchékhov, que a aconselham na construção de um novo espetáculo. Para o bardo, o segredo é trabalhar incondicionalmente, não importa o obstáculo. "Ah, e zombar dos malvados", completa.

    "Une Chambre en Inde" não se contenta em caçoar dos vilões. Um dos seus trunfos é a autoderrisão, a galhofa em relação ao universo do teatro, evidente numa cena em que uma atriz põe em dúvida seu talento –como pode ser uma grande intérprete se teve uma vida sem dramas?

    "Se todos os teatros do mundo fossem demolidos, alguém sentiria falta? E por quanto tempo?", pergunta a meio caminho Cornélia. Para o público, que riu, emocionou-se e aplaudiu longamente quando as luzes se acenderam, a pergunta está mais do que respondida. Mnouchkine fez pequenas alterações na peça para a estreia oficial, em 16/11, mas o ensaio não precisou ser interrompido.

    MERCADO EDITORIAL

    Nas vésperas do aniversário de um ano dos ataques terroristas do dia 13/11, as prateleiras das livrarias se encheram de testemunhos. As obras oferecem diversos pontos de vista sobre a experiência traumática, ainda longe de cicatrizar: do médico da unidade de elite da polícia nacional francesa ("Médecin du RAID: Vivre en État d'Urgence", de Mathieu Langlois), passando pelo dono do restaurante La Belle Équipe, onde 19 pessoas morreram ("Une Belle Équipe", Grégory Reibenberg), até o relato terno de um pai que perdeu a filha no Bataclan ("L'Indicible de A à Z", de Georges Salines), sala de concertos que reabriria no sábado (12) com show de Sting.

    MARTIN BUREAU - 27.out.2016/AFP
    A nova fachada do Bataclan, em Paris
    A nova fachada do Bataclan, em Paris

    BATACLAN EM QUADRINHOS

    Um dos relatos mais fortes é o de Fred Dewilde, pseudônimo de um ilustrador especializado em anatomia que leva o leitor ao olho do furacão. O letreiro anunciando o show da banda Eagles of Death Metal já aparece na primeira página da história em quadrinhos "Mon Bataclan" (Lemieux). Dali em diante, Dewilde relembra as duas horas que passou deitado no chão, fingindo estar morto, e a "bolha de humanidade" que o salvou em pleno caos ao conversar e tocar a mão de uma jovem sobrevivente. "Eu precisava tirar da cabeça o filme que se repetia", contou. Na HQ, os atiradores são representados como esqueletos.

    ISABEL JUNQUEIRA, 32, é jornalista.

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