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    O encontro do MC com o faraó do sax

    RODRIGO BRANDÃO

    13/11/2016 02h03

    Era 1994 quando avistei a pirâmide do Pharoah Sanders.

    O álbum, "Red Hot & Cool: Stolen Moments", era uma compilação pautada por encontros entre a nata do jazz-rap de então (Digable Planets, The Roots, Guru) e os reis que eles reverenciavam via sample: Ron Carter, Lester Bowie (Art Ensemble of Chicago), Herbie Hancock.

    Camila Miranda
    Rodrigo Brandão, Guilherme Granado, Mauricio Takara, Rob Mazurek, Pharoah Sanders, Rogério Martins e Thomas Rohrer no centro de São Paulo em 2013
    Rodrigo Brandão, Guilherme Granado, Mauricio Takara, Rob Mazurek, Pharoah Sanders, Rogério Martins e Thomas Rohrer no centro de São Paulo em 2013

    Nesse contexto, uma faixa destoava um pouco. "This Is Madness", clássico subterrâneo dos Last Poets, em releitura incendiária por um par de integrantes originais somados ao sax desse Sanders, me chamou atenção de cara. Não era exatamente rap, mas tinha tudo a ver. Trazia o barulho e terminava com os três gritando "loucura", literalmente.

    Chapei. Identificação total.

    Nem fazia muito tempo, uma bomba de nome Gil Scott-Heron & Brian Jackson tinha mudado minha vida. E agora isso.

    Seguindo os sinais, mergulhei de peito aberto em tal trilha, munido de caneta numa mão e microfone na outra. Porque páginas de livros podem ser partituras.

    Nos capítulos seguintes, descobri que o músico nascido Farrel Sanders foi integrante da banda de toda a fase final do Santo John Coltrane. Sem falar na obra autoral dele, forrada de clássicos do assim-chamado jazz livre, como "Karma", "Village of the Pharoahs", "Black Unity", ou outras pérolas do pensamento. E que antes disso tudo, tinha sido batizado Faraó pelo mítico Sun Ra em pessoa.

    Várias vidas depois, me vi diante do homem, do mito.

    A fagulha formou fogo em 2010, depois do primeiro dos shows dele aqui –acompanhado por uma parte da minha família que se autoapelidou The Underground. Sair pra celebrar o sonho que virou verdade era a boa, e foi todo mundo pra mesma mesa, menos o mestre.

    Por meio de um desafio em tom de tiração, o baixista Matt Lux levantou a bola: "O Rodrigo cagou de medo de subir no palco e mandar a poesia que gravou com a gente durante a semana".

    Quando respondi que jamais pisaria num terreiro tão sagrado sem ser convidado, o diretor musical e cornetista Rob Mazurek cortou no ato. Fui intimado a participar da apresentação seguinte. Concordei, desde que rolasse a permissão prévia do dono do nome nos anúncios.

    Um dia depois, cheguei no salão carregando pouco além do tal poema, camisa social e a pegada "o que tiver que ser será". No caminho do camarim, Rob contou que tinha falado pro Pharoah sobre o punhado de palavras com que gostaria de tingir um dos temas, e combinou de ele me conhecer. Lá, lançou esse escriba sala adentro e saiu.

    Como gigante gentil que é, o saxofonista mais místico do Oeste começou a conversar. Revelou que gosta quando a oração ocupa a canção, para além da melodia. Emendou que já tinha trabalhado com pessoas do "mesmo tipo" que eu, e perguntou se sabia quem são os "últimos poetas".

    Quando contei que tinha sido esse o meu contato inicial com sua vida e obra, saiu uma gargalhada do meio daquela barba branca que só perde para a da Fafá de Belém. Pronto, o portal para o palco estava escancarado.

    A magia do momento foi magnetizante, disseram depois. Me contento em concordar, porque foi tudo tão intenso que nem sei. Mas lembro de vestir a tal camisa social.

    E a catiça foi conjurada formosa, plantou semente de uma parceria frutífera da banda, que inclui Guilherme Granado e Mauricio Takara, ambos com esse totem artístico, a ponto de gerar mais uma benção da mesma ordem: em 2013, também participei com Pharoah Sanders & The Underground da Virada Cultural no centro de São Paulo. Primeira vez outra vez.

    É como diz o mantra que ele mesmo imortalizou: "The creator has a master plan" (o criador tem um grande plano).

    Axé.

    RODRIGO BRANDÃO, 43, também conhecido como Gorila Urbano, é músico e MC.

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