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    Diário de NY: Quo vadis, Trump?

    27/11/2016 02h00

    LUCRECIA ZAPPI

    A decisão do presidente eleito de fazer da Trump Tower seu gabinete de transição está infernizando os nova-iorquinos. Sua localização, no centro de Manhattan, gerou um nó de engarrafamento, mas também um nó existencial. Nova York é um Estado democrata (58,9% dos votos para Hillary Clinton contra 37,4% para o republicano), onde a liberdade de expressão não parece encontrar censura.

    Trump comporta-se como um extraterrestre em sua cidade natal. Emociona-se com "Evita" –viu seis vezes seu musical favorito–, mas cobra desculpas do elenco do blockbuster teatral "Hamilton", que apelou ao vice eleito, na plateia, por um governo de inclusão. "É tão injusto." No mesmo tom, reagiu no mês passado aos protestos contra seu governo.

    É estranho acostumar-se à ideia de que Trump seja um egocêntrico explosivo, incapaz de se desculpar por suas gafes. Quando passa da conta, se faz de mártir, mesmo que seu "tão injusto" viole os fundamentos da democracia. As pessoas balançam a cabeça em negativa. Ninguém sabe, afinal, para onde vamos com isso. Nem Trump.

    GATO NO MASTRO

    Quem deu "uma chance" a Trump não sabe bem porque o fez, mas talvez acredite que ele vá limpar ou purificar a Casa Branca, e devolver ao país o Technicolor de um passado remoto e encantador, ao estilo da cena do chá em "Alice no País das Maravilhas", na animação feita pela Disney em 1951.

    Trump, nesse contexto, seria o Gato de Cheshire, o guia espiritual na história de 1865 de Carroll, que orienta por vias tortuosas, desconexas. No fim das contas, ele mais confunde do que guia.

    Basta pensar no sorriso insone que brilha no Twitter durante a madrugada e pode desencadear um incidente diplomático de dimensões tsunâmicas. Ou no risco de nepotismo no novo gabinete, com Jared Kushner, marido de Ivanka e genro do futuro presidente, como um dos favoritos a ocupar posto-chave.

    Ainda que ele venha tentando diversificar um pouco com as indicações recentes de duas mulheres para o governo –uma delas filha de imigrantes indianos–, os primeiros nomes que Trump escolheu foram de figuras linha-dura, de extrema direita, indo na contracorrente do tom moderado ensaiado no discurso da vitória.

    Jeff Sessions, por exemplo, é o indicado para o cargo de procurador-geral dos EUA, equivalente ao ministro da Justiça no Brasil. Sessions já afirmou simpatizar com o movimento extremista Ku Klux Klan, "até o momento em que eu descobri que fumavam maconha".

    COLHEITA VERMELHA

    Por trás da pergunta nas ruas "quem é o eleitor de Trump, cujo único projeto de governo era chegar ao governo?", há uma tentativa de compreender essa grande massa de "esquecidos". O que leva direto ao universo vasto de "Colheita Vermelha" (1929), de Dashiell Hammett: Personville, vilarejo pobre movido a minas de carvão nos confins do oeste norte-americano.

    Interessante é que a cidadezinha ficcional de Hammett torna-se ainda mais macabra pela forma como soa, graças ao sotaque caipira dali.

    Personville se transforma em Poisonville. É onde Hammett cruza Trump, capaz de transformar a palavra "pessoa" em "veneno". Incita o ódio a tudo que não se pareça consigo mesmo.

    POST-IT

    E Alice segue despencando no poço fundo. Com Trump na cidade, a lembrança de uma Nova York de excessos aflora nas ruas. Longe da avenida Madison, no Upper East Side, das mulheres coisificadas de Trump e de sua ostentação carregada dos anos 1980, no entanto, corre um movimento subterrâneo paralelo. Trata-se da terapia do metrô.

    Na estação Union Square, na rua 14, as pessoas têm inundado as paredes de ladrilhos brancos com tirinhas trazendo mensagens indignadas e recados de esperança sobre o país e o mundo endurecido por discursos conservadores e xenófobos.

    A ideia foi de Matthew "Levee" Chavez, que não é terapeuta, mas oferece mesinha, cadeira, caneta e uma pilha de tiras adesivas para quem quiser dividir algum pensamento com os passantes.

    Especialmente em Nova York, o metrô é o pulso da cidade, é onde se sente o espírito das pessoas. E as mensagens têm uma tonalidade menos saturada que o Technicolor de Trump. No efeito do mar, é como se fosse um farol que flutua em uma ilha novamente distante, mas possível.

    LUCRECIA ZAPPI, 44, é jornalista e escritora.

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