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    Uma visita ao apartamento do fantástico Todorov

    DANIEL AUGUSTO

    25/12/2016 02h05

    Logo que abriu a porta do seu apartamento, Tzvetan Todorov me convidou para ir até a sala de estudos. Com passos calculados, me conduziu entre centenas de livros empilhados no chão para doação.

    Naquele momento, associei o desapego pela tentadora biblioteca ao espírito público, característico de todo bom professor, que zela pela transmissão do saber.

    Todorov nasceu na Bulgária em 1939, mas mora na França há mais de 50 anos. Seus primeiros trabalhos a ganhar destaque foram estudos formais sobre a literatura: "Queria conhecer sobretudo a maneira como a obra está organizada em si mesma", ele me disse.

    Rodrigo Menck
    Tzvetan Todorov e Daniel Augusto no apartamento do ensaísta em Paris
    Tzvetan Todorov e Daniel Augusto no apartamento do ensaísta em Paris

    Tal abordagem, no seu caso, devia-se ao fato "de ter crescido num país com espírito e regime totalitários", isto é, a Bulgária sob o controle do chamado socialismo de caserna, então alinhada à União Soviética. Quando se mudou para a França, porém, ainda passou anos sob a mesma perspectiva teórica, publicando alguns livros até hoje fundamentais para quem se interessa por estudos literários.

    Aos poucos, entretanto, seus trabalhos deslocaram-se para o exame histórico de algumas noções fundamentais na vida republicana (como povo, igualdade, alteridade, entre outras). Hoje, com uma obra plural, ele se define como um historiador das ideias.

    Eu fui até seu apartamento em Paris para uma série televisiva que dirigi, cujo objetivo era justamente rever algumas ideias do presente num horizonte mais amplo, menos datado. Nessa perspectiva, um dos motivos principais pelos quais eu achava que uma conversa com Todorov poderia ser fecunda para o público brasileiro era o debate equacionado no seu livro "Os Inimigos Íntimos da Democracia", em que ele explica como a democracia pode produzir sua autodestruição, independentemente da ameaça totalitária, ao engendrar filhos ilegítimos, perversões do seu verdadeiro espírito, adversários que nascem do seu ventre.

    Dizer, no entanto, que o desenvolvimento da ideia dos inimigos íntimos da democracia era minha motivação esconde uma intenção pessoal, que teve seu quinhão para que eu tivesse ido à sua casa.

    Eu havia dirigido um curta-metragem inspirado numa história que conheci por intermédio da antologia "Contos Fantásticos do Século 19", organizada por Italo Calvino. No prefácio, o escritor antologista cita, como base de sua visada, a "Introdução à Literatura Fantástica", escrita justamente por Todorov, cujos conceitos foram determinantes para minha adaptação cinematográfica.

    Nessa obra, ele distingue os conceitos de fantástico e maravilhoso: o primeiro engloba histórias nas quais acontecem coisas extraordinárias, mas que talvez só existam na imaginação dos personagens (como "A Volta do Parafuso", de Henry James); o segundo abarca narrativas que aceitam o inexplicável (como "As Mil e uma Noites"). Assim, não sem motivo, um dos momentos mais especiais da nossa conversa foi quando ele explicou: "O fantástico é uma visão de mundo que se manifestou sobretudo no século 19, em seguida à influência crescente do pensamento científico e positivista, que quis explicar tudo, como se tudo estivesse submetido à razão e à vontade".

    Logo na saída de sua casa, Todorov recomendou que eu fosse ao Petit Palais, onde estava em cartaz a exposição "Fantástico! A Estampa Visionária de Goya a Redon" (o prefácio do catálogo era dele).

    Com o sentimento da nossa conversa ainda muito presente, mas entre obras com demônios, fantasmas, monstros, caveiras e outras figuras sombrias, pela primeira vez perguntei-me como um pensador tão luminoso pôde se entregar à reflexão sobre aspectos tão lúgubres da nossa imaginação: o que haveria em comum entre duas entradas tão díspares para compreender o mundo? Por que o historiador de texto sereno e gestos calmos se embrenhou num universo tão tenebroso? Ocorrem-me duas explicações.

    Primeiro, uma certa consciência de si, tal como o título de uma das obras de Goya mais célebres, exposta no Petit Palais: "O Sonho da Razão Produz Monstros". A segunda explicação tem a ver com a consciência do outro que lhe foi franqueada pela literatura: "A obra literária nos revela a interioridade de seres humanos além de nós. É até mesmo o melhor meio de se pôr em contato com o conteúdo de um espírito diferente de nós".

    Hoje, num ambiente com tanta gritaria e polarizações simplistas, a lição da serenidade de Todorov talvez seja uma das únicas maneiras de entender o buraco em que todos estamos metidos, de sair dessa mistura de realidade e fantasia que por vezes só existe na imaginação.

    DANIEL AUGUSTO, 44, cineasta, dirigiu, entre outros, o longa "Não Pare na Pista" (2014).

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