• Ilustríssima

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    Verei a esquerda? Uma reflexão sobre o indivíduo

    BENEDITO RODRIGUES DE MORAES NETO

    25/12/2016 02h00

    A frase inicial do artigo de Luiz Eduardo Soares, publicado na "Ilustríssima" em 27/11, traz a mais significativa definição de esquerda que conheço: "De meu ponto de vista, a esquerda é o campo político daqueles que não aceitam desigualdades que se projetem sobre os potenciais de desenvolvimento das crianças". O texto de Soares, ainda que abrangente, deixou muitos espaços que podem ser procurados como desdobramentos da rica definição.

    Um primeiro aspecto a destacar é o enriquecimento que ela fornece à noção de igualdade social, ao submeter essa noção à do livre desenvolvimento das individualidades. Essa propositura de Marx –central em sua crítica ao regime capitalista, que para ele não permitiria esse desenvolvimento por ser uma sociedade de classes– foi inteira e tragicamente subvertida pelas experiências socialistas do século 20. Para elas, a figura do indivíduo, ao invés de ser visualizada como contribuição fundamental do regime burguês para a história humana, como aliás queria Marx, passou a ser entendida como perversão burguesa, a ser destruída pelo novo projeto social, inteiramente lastreado na igualdade. Sob o socialismo, o indivíduo seria totalmente negado e inteiramente submetido ao social.

    É evidente que essa posição teria que destruir a noção de liberdade, como efetivamente aconteceu. Para Marx, se fosse para superar o capitalismo fazendo com que o social se sobrepusesse aos indivíduos como abstração, então não valeria o esforço, como não valeu. A arrasadora mediocridade da experiência socialista no século 20 ficará indelevelmente marcada na história. Para o futuro, o projeto de crítica ao regime do capital terá que superar radicalmente essa mediocridade, e um dos pilares dessa superação será a noção de que só vale a pena transcender o capitalismo se tal coisa vier a permitir o livre desenvolvimento das individualidades.

    Para um projeto não medíocre de esquerda, é fundamental a noção de que o livre desenvolvimento das individualidades, das potencialidades humanas, exige o desenvolvimento tecnológico, consubstanciado na figura da máquina. Para Marx, essa foi também uma contribuição fundamental do regime burguês para a história da humanidade: a Revolução Industrial. Só a produção à base da maquinaria permite que se possa pensar em superar a sociedade de classes. Sem ela, voltamos a Aristóteles, com a ideia de que o ser humano é o instrumento de produção por excelência, e que, portanto, a exploração de classes é da natureza das coisas.

    A máquina permite superar a noção do ser humano como instrumento de produção, possibilitando então que se possa socializar um projeto de vida digno, com o trabalho humano impregnado de sentido para todos os seres humanos, e não para uma parcela privilegiada da sociedade. Para Marx, a produção generalizada com base no sistema de máquinas colocaria em xeque a própria natureza do sistema capitalista: para que a manutenção histórica de uma classe operária, se o trabalho humano tornar-se-ia crescentemente supérfluo?

    Todavia, uma criação perversa do século 20 em termos produtivos complicou tudo: o taylorismo-fordismo. Essa proposta iniciada por Taylor e ultimada por Ford, com a introdução da famigerada linha de montagem, reforçou o ser humano como instrumento de produção, devendo ser visualizada como imanentemente medíocre. A mediocridade da experiência socialista do século 20 teve muito a ver com a inteira absorção do taylorismo-fordismo. No interior do mundo capitalista, o impacto do taylorismo-fordismo foi imenso. A pouco sofisticada noção de que produzir significava colocar trabalhadores lado a lado, fazendo movimentos repetitivos e monótonos, gerou uma quantidade de empregos fenomenal.

    Qual foi a posição típica da esquerda a respeito dessa utilização massiva de seres humanos como instrumento de produção, exercendo trabalho sem conteúdo? Foi de aceitação entusiasmada, como se depreende da afirmação de Lula em 1994 de que seu modelo ideal de sociedade nada tinha a ver com Marx, e tudo a ver com Ford: os trabalhadores das linhas de montagem deveriam ganhar um salário suficiente para adquirir os automóveis que produziam. Deve-se salientar que Lula presidente foi inteiramente coerente com essa assertiva do então líder sindical: seu projeto de desenvolvimento social esgotou-se no consumismo.

    Voltando à definição de esquerda explicitada por Soares: é possível aplicá-la a um mundo taylorista-fordista? Acreditamos que não, pois esse mundo exige que uma significativa parcela da sociedade tenha uma formação educacional/profissional exígua, ajustando-se a uma vida de trabalho repetitiva e desprovida de conteúdo. Não se poderia nesse caso falar em igualdade social no sentido sofisticado proposto pela definição. A possibilidade de que o conteúdo da definição tenha viabilidade histórica exige, portanto, a destruição do taylorismo-fordismo. Felizmente, e independentemente das práticas políticas de esquerda, que propugnaram sempre pela eternização do taylorismo-fordismo, e consequentemente do próprio capitalismo, o sistema capitalista fez isso através da revolução microeletrônica, gerando portanto grandes potencialidades.

    Se o desafio que já está posto para os países de capitalismo desenvolvido é o de colocar sob a bitola desse sistema uma sociedade com elevadas ambições no sentido do desenvolvimento das individualidades, o desafio para a esquerda é o de explorar as contradições que forçosamente advirão desse processo desafiador. Lamentavelmente, o que se vê em todo canto é uma esquerda que se comporta como viúva do fordismo, querendo a impossível e indesejável volta desse passado "glorioso", e abraçando-se com esse propósito a uma direita oportunista.

    Finalmente, vejamos como a definição de Soares dialoga com um fato recentemente observado no Brasil. Em editorial da Folha de 21/11, lemos: "Ao revelar o peso do grau de instrução dos pais sobre a escolaridade e a renda futuras dos filhos, a pesquisa 'Mobilidade Sócio-Ocupacional', divulgada nesta semana pelo IBGE, mostrou que a desigualdade no Brasil começa mesmo no berço. Segundo o estudo, em 2014 era de R$ 6.739 o rendimento médio do trabalho de pessoas de 25 anos ou mais, com ensino superior completo, cujo pai tinha a mesma escolaridade. Já os brasileiros com diploma universitário e pai sem nenhuma instrução recebiam R$ 2.603".

    O editorial enfatiza que uma explicação desse fato pode se fundar em estudos recentes que indicam que "os acontecimentos nos primeiros anos de vida de uma criança exercem influência significativa sobre seu desempenho no futuro". Merecem destaque dentre esses estudos aqueles realizados na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que demonstram a especial relevância dos dois primeiros anos para o desenvolvimento de toda uma vida. As pesquisas em neurociência têm também salientado que o desenvolvimento cognitivo caminha celeremente até próximo dos seis anos de idade, chegando então a um estágio no qual os desenvolvimentos posteriores serão desdobramentos do estágio já alcançado. Entre indivíduos com experiências extremamente desiguais de desenvolvimento, a diferença cognitiva cresce até alcançar um pico ao redor dos seis anos e depois tende a uma estabilidade.

    A ligação entre essas constatações e a definição de Soares nos parece evidente: se ser de esquerda significa não aceitar "desigualdades que se projetem sobre os potenciais de desenvolvimento das crianças", então ser de esquerda significa radicalizar em termos de socialização da educação desde os primeiros momentos da vida. Desigualdades geradas nesses primeiros momentos não conseguirão ser revertidas depois. Não é mais possível, portanto, se dizer de esquerda e ter muito pouco ou nada a dizer ou fazer sobre educação, em especial para os primeiros anos de vida.

    A impressão que tenho é que uma esquerda tão ajustada ao taylorismo-fordismo não podia mesmo defender a socialização da educação, pois afetaria a reprodução azeitada do sistema que tanto interessava ao fortalecimento da classe trabalhadora e seus representantes. Para o mundo todo, e de modo muito especial para o Brasil, uma proposta que tenha em mente o desenvolvimento social e a igualdade deve radicalizar na oferta de serviços de educação pública de elevada qualidade e no maior período possível do dia, de forma compatível com as exigências de contato familiar, desde os primeiros anos de vida. Afinal, são as famílias de menos recursos que mais necessitam do apoio do setor público para que suas carências não se reproduzam intergeracionalmente.

    Considerando, todavia, as experiências históricas e as visões dominantes, cabe a pergunta que está no título deste texto: será que um dia conseguirei ver essa esquerda?

    BENEDITO RODRIGUES DE MORAES NETO, 66, professor aposentado do departamento de economia da Unesp, em Araraquara-SP, é autor de "Marx, Taylor, Ford: As Forças Produtivas em Discussão" (Brasiliense).

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