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    Perdidos e achados de Andrea Tonacci

    PATRÍCIA MOURÃO
    LÚCIA MONTEIRO
    MATEUS ARAÚJO

    01/01/2017 02h06

    RESUMO O artigo discute a obra do cineasta ítalo-brasileiro Andrea Tonacci (1944-2016) a partir de "Já Visto Jamais Visto" (2013), filme composto de materiais diversos, compilados durante quatro décadas pelo autor, que ganha em março uma retrospectiva no festival Cinéma du Réel, no Centro Georges Pompidou, em Paris.

    Divulgação
    O cineasta Andrea Tonacci e o índio guajá Carapiru, personagem do filme "Serras da Desordem"
    O cineasta Andrea Tonacci e o índio guajá Carapiru, personagem do filme "Serras da Desordem"

    A cena final de "Já Visto Jamais Visto" (2013), seu último filme concluído, mostra Andrea Tonacci sozinho no quadro, em plano americano de três quartos, banhado por uma luz lateral que entra pela esquerda e deixa no escuro a metade direita da imagem.

    Sentado numa cama, ele lê em voz alta, em seu italiano materno, um trecho do romance "O Desprezo" (1954), de Alberto Moravia. O texto opõe dois tipos de realização de um filme: o primeiro, pautado por uma intimidade artificial e carente de inspiração, e o segundo, atravessado pela estima entre diretor e colaboradores, reunidos não simplesmente para cumprir uma encomenda.

    Embora essa modalidade de trabalho partilhado tenha aparecido no filme (nas cenas de conversa sobre o roteiro de "Paixões" com o amigo Joel Yamaji, ou de interação, em diferentes filmagens, com outros parceiros, a começar por seu filho Daniel), foi com a imagem, de datação indeterminada, do cineasta como leitor solitário recolhido num quarto que Tonacci decidiu concluí-lo.

    Revisto agora, esse plano, que fecha seu filme mais pessoal, no qual mais se acessa sua vida privada, soa como um manifesto pelo recolhimento e pela solidão. O corpo e a voz de Tonacci já haviam ganhado visibilidade em "Serras da Desordem" (2006), reencenação da trágica história de Carapiru, índio Awa-Guajá tido como único sobrevivente do massacre de sua comunidade em 1978.

    Ao final daquele filme, em uma inversão radical de uma cena comum em documentários, quando a equipe de filmagem aproxima-se daqueles que serão filmados, vemos o cineasta dirigindo o protagonista e o fotógrafo, Aloysio Raulino. Inicialmente fora do quadro e da vista, Tonacci é encontrado no meio na floresta pela câmera, que segue a trajetória de Carapiru.

    Temos –é claro que construída e encenada– a aparição do diretor a nos lembrar que aquela é a história de Carapiru tal qual entendida e desejada por um homem que o espera e o observa, mas não tem a pretensão de entendê-lo ou reduzi-lo em uma tradução.

    Em "Já Visto", em um movimento contrário e complementar, o diretor se retira num quarto para falar de cinema, ou ao menos de um certo trabalho de cinema do qual fez uma profissão de fé: o da modéstia, do recolhimento seletiva e afetivamente povoado.

    Afirmar-se como cineasta é também reconhecer a contingência das experiências compartilhadas, é retrair-se para se deixar revelar nas clareiras de uma floresta densa e nos interstícios de uma trama de cortes e fotogramas.

    SEM TRADUÇÃO

    Se em "Serras" Tonacci escolhe não traduzir Carapiru –radicalização de algo que já havia feito em "Conversas do Maranhão" (1977-1983), seu primeiro filme sobre um povo indígena, no qual também opta por não legendar as falas dos Canela–, em "Já Visto" ele renuncia à narração over para costurar as imagens de sua vida às de seus filmes.

    Fragmentos filmados por Tonacci ao longo de 40 anos, e por muito tempo inacessíveis a ele próprio, são arranjados ali em uma narrativa autobiográfica lacunar, composta por registros de amigos, família e amores passados colhidos em formatos variados e com distintas finalidades. Até então guardado sem poder ser visionado, o material permitiu, ao ser recuperado, um contato com imagens de que ele não se lembrava mais, ou se lembrava fabulando, inventando.

    O filme reproduz e incorpora o encontro com aquilo que se tornou estranho pela ação do tempo e assemelha-se a um sonho no qual memórias e imagens sempre fragmentadas deslizam por diferentes corpos e lugares sem se fixar. Acompanhamos esse desfile iconográfico como a um fluxo de pensamento sem guia verbal: nenhum comentário vem apossar-se das lembranças.

    É como se Tonacci se recolhesse, recusando qualquer identificação ou intimidade artificial entre si próprio e as imagens de sua vida. O princípio de construção parece ser a manutenção do estranhamento diante do familiar, o reconhecimento do enigma de si mesmo como um outro.

    "Já Visto" cobre pequena parte de uma imensa produção de filmes inacabados, não montados, descartados. Antes e depois de sua morte, falou-se de sua produção "bissexta", "marginal", "escassa" e invocou-se o longo período que separa seus dois filmes mais conhecidos, "Bang Bang" (1971) e "Serras da Desordem" (2006), atribuindo a rarefação de uma obra tão inventiva e explosiva à integridade de um cineasta que não aceita fazer concessões.

    Sem discordar, notemos que tal integridade não se resume à recusa de um sistema de financiamento e dependência com o qual ele não queria compactuar, mas é também, e sobretudo, um princípio ético e estético de recolhimento diante do mistério do tempo, que organiza a experiência, decanta os processos, separa o sujeito de suas memórias e imagens.

    Tal gesto, nos filmes e entre eles, exprime uma modéstia do cinema que ele deseja e pratica, mesmo quando não finaliza filmes.

    Em 40 anos de cinema, Tonacci não fez apenas cinco longas e alguns curtas. Entre os filmes, e mesmo durante sua gestação, ele filmava seu cotidiano, shows de música, povos indígenas, pequenas ficções nunca finalizadas.

    A falta de financiamento era apenas um dos motivos, e nem sempre o decisivo, para que essas imagens não viessem a público. Muitas vezes elas precisavam esperar, ou Tonacci tinha que esperar por elas, ciente das exigências do tempo.

    Um material inédito, recentemente recuperado –e a história de sua invisibilidade por mais de 20 anos–, talvez jogue nova luz para entender a figura de Tonacci nessa linha tênue entre o desejo de cinema e seu recolhimento. Em 1979-1980, com uma bolsa da Fundação Guggenheim, o cineasta percorreu Estados Unidos, Canadá, México, Peru e Guatemala, terminando o périplo no Brasil, registrando líderes e encontros indígenas com uma câmera Sony meia polegada.

    A ideia era se aproveitar da mobilidade permitida pelo vídeo para levar, de um povo a outro, depoimentos e imagens de experiências de conflitos que pudessem contribuir para a percepção da violação física, cultural e territorial sofrida por todos eles.

    O projeto foi interrompido por falta de recursos e também, segundo Tonacci, por sua percepção de que a imagem da resistência dos povos indígenas deveria ser construída a partir da perspectiva deles, e não da sua. Não cabia ao cineasta manipular falas, transformando-as em um produto que, por mais respeitoso que fosse, inevitavelmente imporia um outro discurso, um outro olhar, sobre aquelas imagens.

    Somente em 2014 o material foi recuperado e transferido para um formato de vídeo compatível. Compreende quase 20 horas, a maioria com longos testemunhos de lideranças indígenas sobre o estado de suas lutas, ora mais articulados, ora num tom mais pessoal. Tonacci ouve e filma; não interrompe, praticamente não pergunta. Cada fita existe como unidade autônoma, testemunho bruto e documento de um aprendizado que se dá pela escuta e pela espera.

    Não por acaso, ao rebatizar o projeto no momento de sua recuperação, ele escolheu trocar o título inicial, "A Visão dos Vencidos", por um outro sugerido pelo artista norte-americano Jimmie Durham: "Voices to Be Heard: Struggle of Indigenous People" (vozes a serem ouvidas: a luta do povo indígena). Essa viagem foi feita entre a filmagem e a montagem de "Conversas no Maranhão", e é possível imaginar que ela tenha ajudado Tonacci a montá-lo.

    Nos longos intervalos entre captação e finalização, entre o desejo do filme e sua concretização, o cineasta foi amadurecendo uma intuição já presente em suas obras de juventude: a consciência de que a figura do autor é, por assim dizer, um mal necessário do cinema, de que todo filme tanto carece quanto padece. Ele, que sabia que a experiência do tempo extrapola as possibilidades da linguagem, nos deixa um imenso material por descobrir, à espera de novos sentidos.

    Parte dele estará na retrospectiva que o festival Cinéma du Réel prepara em março, no Centro Georges Pompidou, em Paris.

    LÚCIA MONTEIRO, 39, é doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela USP, onde desenvolve pesquisa sobre cinemas nacionais periféricos.

    MATEUS ARAÚJO é professor de cinema da USP.

    PATRÍCIA MOURÃO, doutora em meios e processos audiovisuais, foi produtora do filme "Já Visto Jamais Visto" e é uma das curadoras da retrospectiva de Andrea Tonacci em Paris, em março.

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