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    Leia trecho inédito do novo livro de Marcelo Moutinho

    MARCELO MOUTINHO
    ilustração MARIANA SERRI

    08/01/2017 02h02

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é o começo do conto "As Praias Desertas", um dos que compõem a antologia "Ferrugem", que a editora Record lança no fim de janeiro.

    Avener Prado/Folhapress

    Eu vim, como combinado.

    E vim mais cedo porque queria ver a sua chegada. A calça social dobrada na barra das pernas, uma camisa polo de cor escura, talvez marrom, os óculos redondos de armação tartaruga. Nos pés, tênis usados mas ainda dignos. Imagino esse desenho sobre um fundo azul, sua pressa em deixar para trás a paisagem, o movimento só no primeiro plano, sem perspectiva. Você.

    O mar está calmo, bom de tomar banho, dá para ver daqui. Na frente do banco de areia, há uma daquelas piscininhas onde as crianças gostam de brincar e fazer xixi. Quando eu era menina, caçava siris ali. Meu pai ensinou a usar o puçá. A gente entra na água sem fazer barulho e fica de olho nas manchas pretas que sobressaem na areia. Quando acha, basta um golpe rápido. O bicho luta contra os fios do puçá, mas é batalha perdida. Eu só não tinha coragem de tirar o siri do emaranhado de cordas. Siris tornam-se agressivos sob ameaça.

    Nunca pescamos juntos, penso agora. Nunca sequer falamos sobre pesca. Não sei se você um dia caçou siris com um puçá, ou se aprendeu a manejar o molinete –nunca consegui, por mais que tentasse. A linha enrolava e no fundo eu tinha medo que, no momento de lançar o peso ao mar, algum dos anzóis cravasse na minha pele.

    No dia em que nos conhecemos, o mar não estava assim, bom para siri. Estava batido, com muita espuma. Mar com espuma é bom para bagre e papa-terra, peixes que nadam no raso. Podemos falar de pesca, se quiser, quando você chegar. Podemos falar de tantas coisas.

    Foi assim quando a gente se viu pela primeira vez, falamos por quase quatro horas, você lembra? O rapaz que trabalhava no trailer trouxe a conta um monte de vezes. Trilha frita, água de coco, cerveja, e mais cerveja. Ele nos apressava, mas sabia o que estava acontecendo, por isso esperava sempre um pouco mais. A gente nota quando acontece.

    Assim que a turma foi embora, e ficamos nós dois, acho que todo mundo notou também. Você não usava camisa polo naquela época, isso foi depois. Também não usava óculos. Estava de sunga apenas, não sei se chinelos. Lembro que a Cláudia nos apresentou dizendo que você tinha acabado de chegar de um intercâmbio nos Estados Unidos. Que foi para lá aprender inglês e trabalhar numa estação de esqui. Achei peculiar alguém que chega de uma estação de esqui estar na praia, de sunga, debaixo de um sol daqueles. Não combinava. E, de cara, você não chamou minha atenção. Típico garoto marrento de papai rico que quer tirar de novidade no grupo. Então me perguntou se eu gostava de mergulhar à noite, e falou que mergulhar à noite é melhor que mergulhar de dia, porque não se pode ver direito o que tem dentro da água e é como se a gente mergulhasse num abismo.

    Como se a gente mergulhasse num abismo, foram exatamente essas as palavras.

    Eu não podia imaginar que ficaríamos mesmo ali até anoitecer, para tirar à prova sua tese. Você pediu ao rapaz do trailer que desse uma olhada nos nossos troços, quer dizer, nos meus, enquanto íamos na água. E ele avisou que logo logo ia fechar. Você lembra?

    Gostaria de entender por que não falamos de siris, e puçás, e pesca, naquele dia. Talvez fossem páginas em branco demais para preencher, e julgássemos que havia tempo, tempo bastante. O amor ainda era uma curiosidade.

    Não consigo recordar, igualmente, em qual momento da conversa fizemos o acordo, embora saiba, sim, que foi naquele dia. Temos a vida pela frente e quero fazer muitas coisas, você comentou algo assim. Eu também queria fazer muitas coisas. Passar no vestibular, me formar na faculdade. Alugar um apartamento em Botafogo, perto do cinema. Comprar um carro. Emagrecer. Ir a Paris, mudar o mundo.

    Não, eu não pensava em casar, ter filhos, essa agenda tradicional. Isso foi depois, mas você não sabe.

    Quando perguntei se seria capaz de passar a vida com alguém, com uma só pessoa, lembra o que você falou? Você falou que sim, mas não já. Que era preciso viver antes. Eu, de minha parte, pensei: e isso não significaria viver? Mas não disse nada.

    Hoje, logo que cheguei, quis saber do rapaz do quiosque se ele conheceu o outro, que trabalhava aqui antes, quando ainda era trailer. Maluquice minha. Claro que não conheceu, a idade não bate. Ele ofereceu o cardápio, perguntou se eu não queria uma cerveja, já trazendo a lata. Resolvi esperar, perguntei se podia usar uma das cadeiras, eis que o calçadão está vazio –um calçadão, imagina só. A gente pode tomar essa cerveja juntos, daqui a pouco.

    Uma vez encontrei você na internet, sabia? Sei que não devia, que nossa combinação não era essa, mas não resisti e dei um Google no seu nome. Nada de perfis sociais, como eu poderia esperar. E, no entanto, várias alusões ao diretor executivo com MBA não sei onde.

    Quando você chegar, vou te contar que passei no vestibular e me formei na faculdade. Também morei em Botafogo –já não moro mais–, embora não tão perto do cinema. Emagreci, mas voltei a engordar um pouco. Não fui a Paris. Precisava guardar dinheiro, e em viagens se gasta muito.

    Tampouco casei ou tive filhos, mas isso não estava mesmo no projeto. Ah, sim: tenho perfil nas redes sociais. Só que não costumo publicar nada. Fico apenas vendo as pessoas fazendo coisas. Restaurantes, aniversários. Talvez você tenha checado. – Moço, me traz uma cerveja? Eu chequei você, vi a foto. Ela é bonita. Engraçado, você sempre falou que não gostava de mulher loira.

    Ainda está casado? Se separou? Teve filhos? Bom, não importa. Temos nosso trato. E eu também vivi uns casos, com data para acabar.

    Aqueles meses depois que a gente se encontrou foram o antes. O meio de tudo, um pedaço de angústia que precisava suportar. Do jogo. Agora vamos retomar as coisas como tinham que ser. Pouco importa se a praia está tão diferente, e está. Ruas calçadas de asfalto, prédios colados uns nos outros. Você falou em praias desertas, vamos ficar velhinhos e morar numa praia deserta como essa. Andar descalços o dia inteiro. Dormir sob as cobertas sentindo o cheiro da maresia. Uma casa não muito grande, mas charmosa, com quintal e dois ou três cachorros. Cozinha espaçosa para a gente preparar nossa comida –eu faço o almoço, e você, a janta–, um quarto de hóspedes para receber os amigos, uma mesa de pingue-pongue. Você mencionou a mesa de pingue-pongue e ela entrou no pacto.

    Na semana passada andei vendo o preço de uma mesa de pingue-pongue. Nem é tão caro. Essa vai ser uma surpresa: comprei a mesa. Quando a gente escolher a casa, a loja vai entregar lá. Mas isso não vou te contar, não. Quero ver sua cara quando a mesa chegar. Comprei raquetes também, daquelas emborrachadas, como você gosta.

    Tem mais gente chegando à praia. Acho que a essa hora começa a encher. Já passa das dez e meia. Será que você confundiu o lugar? Não existiam esses quiosques, a gente marcou no trailer do seu Mário, mas o trailer do seu Mário era aqui, onde está esse quiosque agora.

    – Moço, vou ali na frente e já volto. Não deixa ninguém pegar minha mesa, tá?

    O que trinta anos não fazem com uma rua. Não conheço mais ninguém. Andei uns trezentos metros, parei em quatro quiosques e ninguém. Era mato sobre areia, lembra? E os trailers com cachorro-quente da Geneal.

    Melhor ficar aqui. Se nós dois nos movermos procurando um ao outro, aí é que a gente não se encontra. Fico tranquila porque você sempre foi atirado, sempre correu atrás das coisas que anseia. Impossível não me achar. A não ser que tenha havido algum problema. Pneu furado? Doença repentina, daquelas que prendem na cama? Como me avisar?

    MARCELO MOUTINHO, 44, é jornalista e escritor, autor de "Na Dobra do Dia" (Rocco).

    MARIANA SERRI, 34, é artista plástica.

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