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    Reforma deve priorizar transparência e atacar machismo dos partidos

    FERNANDO NEISSER

    15/01/2017 02h04

    RESUMO Embora reformas políticas tenham sido gestadas e efetivadas no Brasil, persistem distorções. O autor do artigo propõe instituir recompensas para abrir a caixa-preta dos partidos: quanto mais transparência e controles externos, maiores seriam os repasses do Fundo Partidário e o tempo de rádio e televisão.

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    Uma das poucas certezas que se pode ter no Brasil é a de que, concluída uma eleição, tem início o debate sobre a próxima reforma eleitoral. A constatação nasce da observação do passado recente, uma vez que, desde a aprovação da atual Lei Geral das Eleições, a lei nº 9.504/97, passamos por 11 reformas em dez ciclos eleitorais.

    É bem verdade que a última, a lei nº 13.165/15, foi especialmente infeliz nas alterações trazidas. Descortina-se, assim, a perspectiva de que a próxima consiga corrigir alguns dos defeitos mais notórios vistos em 2016.

    Para essas eleições municipais adotou-se um modelo de campanhas curtas, reduzindo sua duração à metade. Com as inúmeras restrições impostas à propaganda eleitoral, banida das ruas e concentrada no horário eleitoral gratuito, saíram na frente os candidatos-celebridades. Uma vez abolidas as doações empresariais, e na ausência de regulação adequada para o "crowdfunding", abriu-se espaço a candidatos que não apenas já eram conhecidos (dispensando a propaganda) como também dispunham de fontes próprias de financiamento.

    Não sem razão, o símbolo maior desse novo perfil (João Doria, do PSDB) foi eleito em primeiro turno na capital paulista, fenômeno que, em maior ou menor medida, repetiu-se em diversas cidades.

    As mudanças, contudo, pouco ou nada fizeram para mitigar a sensação de falta de representatividade que se espraia em toda a sociedade. O famoso bordão "não me representa", que ecoava desde as manifestações de 2013, segue sendo ouvido nos movimentos de rua, à esquerda e à direita.

    Pode ser um alento reconhecer que o fenômeno não é apenas local. Em praticamente todas as democracias percebe-se uma fadiga dos modelos partidários que se consolidaram ao longo das últimas décadas. Os partidos que dominaram a política europeia e latino-americana perdem paulatinamente espaço e não encontram receptividade entre os mais jovens.

    PARTIDOS OPACOS

    Se parece difícil buscar uma solução global para a questão, cujas causas passam pela própria fragmentação dos interesses na pós-modernidade, é possível constatar que a crise aqui tem suas peculiaridades: os partidos brasileiros são, em sua grande maioria, fechados, autoritários, opacos e machistas.

    Ao cidadão comum, distante da política, parece impossível adentrar a hermética realidade das legendas. Admite-se, sem peias, que as agremiações contam com donos, que arbitram apoios e oposições de acordo com as benesses que possam ser obtidas.

    Contudo, o atual cenário brasileiro, ao conjugar uma crise política severa com a inegável atenção pública trazida para os trabalhos do Parlamento, pode representar uma oportunidade rara para que se promova uma efetiva reforma nas estruturas partidárias.

    Antes de tudo, é preciso compreender que os elementos que compõem um sistema político-eleitoral não são bons ou maus em si; não há modelo perfeito a ser seguido ou copiado de outros países. As escolhas feitas, desse modo, são apenas mais ou menos aptas para atingir um determinado resultado.

    Se o interesse, por exemplo, for reduzir o número de partidos políticos, a opção por um sistema distrital será vantajosa. Caso se pretenda aumentar a participação das minorias no Parlamento, sem dúvida o sistema proporcional atingirá com mais facilidade esse fim.

    Por essa razão foi que o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), disse, perante a comissão que debateu a reforma política na Câmara dos Deputados em 2013, que antes de escolher quais alterações seriam promovidas, era necessário decidir aonde se pretendia chegar. As regras político-eleitorais são como ferramentas; um martelo não é melhor ou pior do que uma chave de fenda, apenas se presta a uma finalidade distinta.

    Nesse sentido, se o diagnóstico que se tem é o da necessidade de abertura e democratização dos partidos políticos, as escolhas devem ser feitas com esse norte.

    O primeiro problema que deve ser enfrentado, contudo, é o da autonomia constitucional dos partidos políticos. De acordo com o art. 17, §1º da Constituição Federal, "é assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento".

    A regra deve ser compreendida à luz do período de sua gestação. Ao tempo da Assembleia Nacional Constituinte, saíamos da ditadura, na qual não apenas se restringiu o direito de existência das agremiações partidárias como se lhes impôs uma vigilância estrita. Nada mais natural que as forças políticas que reorganizavam o quadro partidário ansiassem pela mais ampla liberdade, instituindo a autonomia e dando aos partidos a forma de pessoa jurídica de direito privado.

    Ainda que os tempos sejam outros, a norma vige e deve ser respeitada. Essa constatação não significa que nada possa ser feito para conduzir os partidos políticos aos rumos desejados pela sociedade. Quando não é possível ameaçar com pena quem se desvia da conduta desejada, resta ao direito oferecer uma recompensa para incentivar o comportamento esperado, a chamada sanção premial.

    Essa é a lógica por trás, por exemplo, dos incentivos fiscais, largamente utilizados atualmente. Quando uma prefeitura escolhe uma área que julga prioritária para receber investimentos, não pode simplesmente determinar aos empresários que ali aloquem seus recursos. A liberdade econômica, também de fundo constitucional, impede essa medida. Nada obsta, contudo, que se atinja o mesmo objetivo concedendo-se isenção de IPTU e de outros tributos.

    PAU E CENOURA

    No caso das siglas políticas, se a autonomia constitucional impede que se use o pau (a força da lei), há que se escolher qual a cenoura certa (ou seja, o prêmio) para incentivar a reforma buscada. A resposta é simples, já que as agremiações vivem, basicamente, de dois alimentos: recursos do Fundo Partidário e direito de antena, ou seja, tempo de exposição na televisão e no rádio.

    Atualmente, esses dois "bens" são divididos de modo a beneficiar os maiores partidos. Parcela quase irrisória é rateada igualmente entre todos os partidos, enquanto a maior parte é aquinhoada de acordo com o número de deputados federais eleitos por cada sigla ou segundo os votos obtidos na eleição para a Câmara dos Deputados.

    No desenho sugerido, o montante hoje distribuído de forma proporcional –de 95% dos recursos do Fundo Partidário e do direito de antena– seria dividido em duas partes. Uma delas seguiria a lógica atual, já que há sentido em premiar os partidos que obtiveram maior respaldo da sociedade nas urnas. Outra parte, contudo, seria destinada àquelas legendas que atingissem metas de democratização interna fixadas objetivamente pela lei.

    Em primeiro lugar, há que se abrir os partidos à participação da sociedade. Para isso, faz-se necessário o fim das reeleições indefinidas aos cargos de direção, tomando emprestadas as regras de restrição para grupos familiares que vigoram nos cargos do Poder Executivo. Os diretórios devem, ainda, ser eleitos pelo voto direto dos filiados, bem como direta deve ser a escolha dos candidatos, instituindo-se prévias obrigatórias.

    Para mitigar o caciquismo, é essencial abolir a figura das comissões provisórias, que se eternizam nos municípios e Estados, concentrando poderes nas mãos de alguns poucos dirigentes.

    No plano da transparência, os partidos devem adotar regras de "compliance" semelhantes àquelas que a Lei Anticorrupção previu para as empresas privadas, ou seja, programas de integridade que detalhem responsabilidades internas no cumprimento das leis. Do mesmo modo, há que se premiar quem adotar auditorias externas nas contas partidárias, multiplicando-se as instâncias de fiscalização e controle.

    Por fim, atenção especial deve ser dada à participação feminina na política. O Brasil amarga vergonhosa posição nos rankings internacionais que mensuram esse essencial traço de civilidade, com aproximadamente 10% do Congresso Nacional formado por mulheres. Garantir a paridade nos cargos de direção e nas candidaturas, bem como a destinação de recursos financeiros e tempo de televisão e rádio na mesma proporção às mulheres, é um passo necessário para conferirmos à maioria da nossa população a dignidade e o espaço que devem ocupar.

    Com a estruturação dessas metas em tópicos mensuráveis, será possível premiar os partidos que avancem em cada um dos temas. Em um primeiro momento, é de se supor que a estratégia de adequação seja vantajosa às pequenas e médias legendas, que dispõem de estruturas menos enferrujadas e que vislumbrarão a possibilidade de saltar à frente de suas concorrentes diretas.

    Com o tempo, contudo, a expectativa é que se possa entrar em um círculo virtuoso, uma vez que nenhum partido tende a querer ser deixado para trás na divisão dos recursos públicos.

    Permite-se, assim, o pleno exercício da autonomia, destinando-se, ao mesmo tempo, de forma republicana e transparente, os parcos recursos de que dispomos para financiar a democracia.

    FERNANDO NEISSER,37, é advogado e presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo.

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