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    O legado plural de Ricardo Piglia e os casórios no Colón

    SYLVIA COLOMBO

    21/01/2017 23h34

    Os últimos dois anos da vida de Ricardo Piglia, morto no último dia 6, aos 75, foram marcados pelo sentido de urgência. Sabendo que a esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa da qual padecia, limitaria cada vez mais seus movimentos, o autor acelerou sua produção, cercou-se de assistentes e trabalhou de modo frenético. Também abriu sua casa ao cineasta Andrés Di Tella, que registrou a leitura que Piglia fez dos diários que mantinha desde a adolescência (o produto é o documentário "327 Cuadernos").

    Os resultados estão nos mostradores das principais livrarias de Buenos Aires: novos ensaios, seminários revisados, diários retrabalhados, além de coletâneas de entrevistas. Entre as obras figura "Las Tres Vanguardias" (Eterna Cadencia), baseada num seminário que ele deu nos anos 1990. Aqui, Piglia estuda os autores que sucederam aos míticos Macedonio Fernández, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, tentando mapear as continuidades e rupturas da literatura argentina.

    Leo Ramirez - 3.ago.2011/AFP
    Ricardo Piglia no evento em que recebeu o prêmio Romulo Gallegos, em Caracas
    Ricardo Piglia no evento em que recebeu o prêmio Romulo Gallegos, em Caracas

    Os nomes para os quais aponta são Juan José Saer, que passou a maior parte da vida em Paris e produziu romances hoje considerados essenciais para entender a ditadura ("Nadie, Nada, Nunca") e a formação da Argentina ("O Enteado"); Manuel Puig ("O Beijo da Mulher Aranha"), por buscar integrar o "underground" à tradição cultural; e Rodolfo Walsh ("Operação Massacre"), por encarnar o jornalista e o escritor político –era um montonero e foi morto pela repressão militar.

    Também acaba de chegar às livrarias o segundo volume da trilogia "Los Diarios de Emilio Renzi", as memórias de Piglia contadas por meio de seu alter ego, numa espécie de jogo que permitiu ao escritor brincar um pouco com suas próprias opiniões. Depois de "Los Años de Formación" (2015) e "Los Años Felices" (2016), será lançado nas próximas semanas o último tomo, "Un Día en La Vida".

    Além de "La Forma Inicial" (Eterna Cadencia), completa o pacote uma coletânea de ensaios antigos de Piglia, agora reorganizados, sobre suas principais referências nos EUA (William Faulkner, F. Scott Fitzgerald e Truman Capote). O volume se chama "Escritores Norteamericanos" (Tenemos las Máquinas). Infelizmente, nada disso está previsto para sair no Brasil.

    TEATRO SEM TEATRO

    A crise econômica que vive a Argentina atinge também a gestão cultural. Um dos principais cartões-postais da cidade, o teatro Colón, está alugando seu espaço para eventos privados de empresas, espetáculos de apelo popular e até para casamentos, tirando espaços da agenda antes pertencentes ao balé e à música clássica. Bailarinos do corpo do teatro organizaram um protesto numa apresentação, levantando cartazes que diziam "Basta!". Os artistas também protestam contra o uso político do espaço, emprestado pelo governo da cidade para festas de sindicatos.

    LE PARC ATÉ O CÉU

    O veterano artista cinético argentino Julio Le Parc, 88, um dos principais nomes do gênero, radicado em Paris desde 1958, resolveu homenagear Buenos Aires com uma obra pública.

    Trata-se de "Hacia la Luz", escultura instalada na plazoleta Rubén Darío. Apesar de o local ficar num bairro nobre, Le Parc insistiu que a obra estivesse bem à vista da principal favela da cidade, a Villa 31, "para transmitir uma ideia de união e otimismo", disse. Com seis metros de altura, seu formato é o de uma espécie de flecha branca e ondulada.

    BORGES E A GENTRIFICAÇÃO

    A gentrificação de bairros tradicionais de Buenos Aires tem criado uma moda insólita: construir casas para novos restaurantes e bares que evoquem o casario antigo e popular de Buenos Aires, imitando até a caligrafia dos letreiros dos estabelecimentos no começo do século 20.

    Curioso que, numa entrevista inédita de Jorge Luis Borges, concedida em 1978 e só agora recuperada pelo jornal "Perfil", o autor já comentava, de um modo que parece visionário, essa "tendência". Dizia ele: "Estão construindo no bairro de San Telmo falsas casas velhas, e até tem ocorrido a essas pessoas colocarem poços nas esquinas. É um absurdo, porque todo mundo sabe que os poços, antigamente, ficavam nos pátios das casas, e não na rua".

    SYLVIA COLOMBO, 44, é correspondente da Folha em Buenos Aires.

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