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    A ausência de João Cabral numa dedicatória a Luiz Guilherme Piva

    LUIZ GUILHERME PIVA

    21/01/2017 23h33

    Da poesia de João Cabral de Melo Neto se diz que é árida, de linha reta, matemática. O poeta assim a constrói: ele a lapida, lixa e põe de pé em tijolos lógicos. Quer "Dar a qualquer matéria/ a aritmética do metal".

    Mas não o consegue totalmente. E isso o incomoda. A incapacidade de erigir sua obra inteiramente cúbica e seca é uma ausência que ele carrega.

    Vá-se aos estudos, às declarações do poeta sobre suas referências. Lá estão Le Corbusier e a casa só moradia. Mondrian e as linhas cubistas. O engenheiro e poeta Joaquim Cardoso. É o que ele pretende de sua poesia. A concisão. O ponto exato. A proporção áurea. O poema forjado na bigorna.

    Acervo Pessoal
    Dedicatória de João Cabral de Melo Neto em seu livro "Obra Completa" a Luiz Guilherme Piva, em 1994
    Dedicatória de João Cabral de Melo Neto em seu livro "Obra Completa" a Luiz Guilherme Piva, em 1994

    Mas não consegue. As curvas, a música, a dança entopem-lhe as molduras, transbordam o arame farpado, esparramam-se. Como o canavial ao vento, que desrespeita a geometria da cidade e enche de gente as ruas e as praças. A multidão é que é a imagem do canavial.

    O mais importante é que o canavial tem gênero e forma: "É como um grande lençol/ sem dobras e sem bainha;/ penugem de moça ao sol,/ roupa lavada estendida". Eis o ponto: é a mulher que faz desbordar as dimensões que o poeta quer conter. Seu corpo recurva a paisagem retilínea.

    E assim João Cabral, talvez na contramão do que pretendia, se aproxima do desenho de Niemeyer, cuja medida é o corpo feminino. Aliás, é interessante registrar que Joaquim Cardoso foi o calculista das obras de Niemeyer.

    A mulher é a casa ("a vontade de corrê-la/ por dentro, de visitá-la"), e isso põe o poeta em conceito oposto aos de Le Corbusier e Gerrit Rietveld, cuja proximidade sua obra evoca.

    A mulher é o mar ("o dom de se derramar/ que as águas faz femininas"), o fogo da dançarina ("gestos das folhas do fogo,/ de seu cabelo, sua língua") e a voz ("fresca e clara, como se/ telefonasses despida"). Mar, fogo e som não cabem em esquadros.

    Mulher que ele vê "numa gaiola", tendo a assediá-la um pássaro –que é o resto do universo que com a gaiola faz divisa–, porque sem ela ele se sente em um cárcere, embora só lhe falte o espaço mínimo que a mulher habita –ou que a veste ("de uma gaiola vestida").

    O universo, o pássaro, é João Cabral, que se sente enjaulado por não tirar a mulher da gaiola e incorporá-la a seu domínio, mesmo tendo domado o mundo com sua régua. Ela está fora das paredes de pau a pique, de cimento e cal, de argila e pedra de seu verso –e por isso ele se incompleta, se incomoda.

    É essa incompletude que o define. O poema "Uma Faca só Lâmina" é sua confissão, está enterrado em seu corpo o peso da ausência, a avidez por algo que não se obtém: "Seja bala, relógio,/ ou a lâmina colérica,/ é contudo uma ausência/ o que esse homem leva".

    É isso o que está entredito na dedicatória que ganhei do autor em seu livro "Obra Completa", de 1994, da editora Nova Aguilar. Na noite de autógrafos, ao saber meu nome, ele se surpreendeu e escreveu: "Para o Piva, que tem a sorte de ser conhecido laconicamente, of. [oferece] o prolixo João Cabral de Melo Neto".

    Ele está insatisfeito por não ter obtido a concisão que queria, a começar pelo próprio nome. Mas é mais do que o nome. É sua poesia e sua existência que estão incompletas. A ausência é sua marca. Nos poemas, a ausência tem a forma da mulher, indomável e inalcançável. Na dedicatória, está o lamento quanto ao nome longo, anticoncreto, quase parnasiano.

    O curioso é que na noite do lançamento eu tinha viajado e quem pegou o autógrafo foi um amigo, que para tal se apresentou com meu nome.

    Isso mesmo. A dedicatória é para mim. Mas eu estava ausente.

    LUIZ GUILHERME PIVA, 54, economista e doutor em ciência política pela USP, publicou "Ladrilhadores e Semeadores" (ed.34).

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