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    Leia trecho de roteiro do filme "Eu não Sou Daqui", que estreia em Tiradentes

    ALEXANDRE BAXTER
    LUIZ FELIPE FERNANDES
    ilustração VÂNIA MIGNONE

    21/01/2017 23h32

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é parte do roteiro do longa-metragem "Eu não Sou Daqui", que estreia na 20ª edição da Mostra de Tiradentes, uma das principais vitrines da produção autoral brasileira. O filme toma por mote o encontro entre um andarilho e o técnico de um time de futebol de várzea. O festival mineiro, pelo qual já passaram Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro, vai até o dia 28/1.

    Foto Bruno Santos/Folhapress

    EXTERIOR/DIA - CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA

    PATO e ZÉ GRANDE estão na beira do campo, à sombra de uma árvore frondosa. O gramado está alto pela falta de cuidados, e o mato já avança em algumas áreas. Ruídos de máquinas e sinais de alerta vêm da oficina da companhia ferroviária, atrás de uma das traves. Os trilhos circundam o campo de futebol, e os trens carregam o minério para longe dali.

    PATO, sentado num tijolo, pica um graveto. O velho ZÉ GRANDE, de pé, escorado no muro, tem o olhar longe. Não se falam. Desde o primeiro encontro, sentem-se confortáveis em silêncio.

    Um homem surge e caminha em direção aos dois, que, num primeiro momento, não o identificam. Ele veste uma camisa alguns números acima do seu tamanho, enfiada para dentro da calça. É ELI, 42 anos, filho de ZÉ GRANDE. ELI é recebido sem entusiasmo pelos dois homens. Ninguém se toca.

    ELI

    Tá bom, pai?

    ZÉ GRANDE

    Bom, meu filho.

    ELI

    Bom, Pato?

    PATO consente com a cabeça.

    ELI

    Melhorou o barraco ali, né, pai?

    ZÉ GRANDE

    É, melhorou.

    Vai ficar melhor ainda.

    ELI

    Tá bom. E o Pato?

    Tá catando no gol aí?

    PATO

    Seu Zé tá me ensinando umas coisas aí.

    ELI

    Ele já tá pegando igual o Goiabinha, pai?

    ZÉ GRANDE

    Ainda não. Mas vai pegar.

    Vai pegar melhor.

    ELI se aproxima um pouco mais de ZÉ GRANDE.

    ELI

    E o senhor, pai? Tá ficando aí?

    ZÉ GRANDE

    É, tô.

    ELI

    Hoje faz uma semana que o senhor não vai em casa.

    ZÉ GRANDE

    Tô bem aqui.

    ELI

    Esse barulho aí incomoda demais.

    O barulho dos vagões, dessas máquinas.

    ZÉ GRANDE

    Durmo tranquilamente.

    ELI

    Nós temos uma casa boa na cidade, pai.

    Ah, não... Vai ficar morando em vestiário de futebol?

    O senhor tem família lá, pai.

    ZÉ GRANDE não dá sequência à conversa. Aquele diálogo parece já ter acontecido outras vezes. O barulho das máquinas continua. ELI volta mais incisivo.

    ELI

    Eu vou insistir com o senhor de novo, pai.

    Em nome de Jesus...

    ZÉ GRANDE

    (interrompendo ELI)

    Para com isso, Eli! Já te falei sobre esse negócio.

    Você escolheu Jesus, a Bíblia...

    Eu escolhi isso aqui!

    ZÉ GRANDE sai de vez da conversa e vai em direção ao barraco, antigo vestiário do campo, improvisado como morada. PATO continua sentado. Com os olhos baixos, arranca pedaços da grama. ELI vê o pai se distanciar na imensidão do campo de futebol.

    ELI

    O que tá acontecendo com o pai, Pato?

    Ele tá estranho.

    Tem uma semana que ele não vai em casa.

    PATO pica os pedacinhos de grama.

    ELI

    Conversa com ele, Pato.

    Ele tá te escutando mais do que o povo lá de casa.

    ZÉ GRANDE passa pelo varal em que os uniformes do time estão pendurados. Pega um dos shorts e entra no barraco. A locomotiva solta um apito. O som dos vagões desliza pelos trilhos e a terra trepida. O trem se aproxima.

    LUIZ FELIPE FERNANDES, 36, é cineasta.

    ALEXANDRE BAXTER, 37, é fotógrafo e fundador da produtora Alicate.

    VÂNIA MIGNONE, 49, é artista plástica e abre exposição na Casa Triângulo, em São Paulo, no dia 4/2.

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