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    Jacó Guinsburg, 95, revê seus 70 anos na edição de livros

    NELSON DE SÁ

    29/01/2017 02h00

    RESUMO Um dos mais celebrados editores do país, Jacó Guinsburg segue à frente da Perspectiva, referência em artes e ciências sociais, ao mesmo tempo em que lança florilégio de apontamentos sobre o teatro. Na entrevista, lembra a participação do pai na Primeira Guerra e os anos de formação, entre cultura ídiche e esquerda armada.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Jacó Guinsburg, na sede da Editora Perspectiva
    Jacó Guinsburg, na sede da Editora Perspectiva

    No livro de contos "O que Aconteceu, Aconteceu" (Ateliê,), Jacó Guinsburg descreve como um certo Saul atua na defesa armada de uma rádio que transmite o comício em que "a voz do secretário-geral do Partido seria ouvida no país inteiro". Saul era ele mesmo, a rádio, a Cruzeiro do Sul, e o comício, o de Luiz Carlos Prestes, em São Paulo, em 1945.

    Mais de 70 anos depois, o editor da Perspectiva, um dos mais respeitados do país, fala desse radicalismo de juventude, da coletividade judaica e da longa dedicação ao ofício de publicar livros. Também crítico e professor de teatro, ele avisa, antes de mais nada, que é jornalista. "Vou falar como o outro: 'O sr. sabe com quem está falando?'. [Mostra carteirinha] Está aqui, 1951, no sindicato. O meu número é 1.031."

    Ao longo de duas hora e meia, foi sempre irônico, brincalhão. Aos 95 anos, recebeu a Folha na sede da editora na avenida Brigadeiro Luís Antônio, que antes foi sua residência. Está com dificuldade para andar, mas não para recordar, falar e contar piadas, tanto autodepreciativas como sobre amigos que editou.

    Evita se gabar dos 1.200 títulos da Perspectiva, de Umberto Eco a Haroldo de Campos. Chama mais a atenção para o fato de que deixou escapar o best-seller "O Nome da Rosa", "uma grande falha". Como autor, lançou em dezembro "Boca de Cena: Marcações de um Espectador" (Edusp), coletânea de textos sobre teatro, e acaba de voltar às livrarias com "O Naturalismo", que organizou pela Perspectiva.

    *

    Folha - O sr. veio com três anos, quatro?

    Jacó Guinsburg - Cheguei com três anos, pouco depois da Revolução de 1924. Eu tinha nascido em 1921 na Bessarábia, que é atualmente a Moldávia. Meu pai queria ir para os Estados Unidos, mas fecharam a imigração. Fui direto para Olímpia, no interior. Eu tinha um tio que desde antes de 1914 vivia lá, naquele tempo o faroeste paulista. Tinha até um cara que era chamado de Lampião Paulista [Aníbal Vieira].

    O sr. foi alfabetizado em ídiche ou em português?

    Em português. O ídiche era a língua que se falava na minha casa. Meu pai, além do ídiche, falava russo, porque foi soldado na Primeira Guerra. Hoje utilizo várias línguas, mas a única em que sou capaz de escrever é o português. Ler eu leio várias. Leio e escrevo inglês, francês. Leio à boa moda brasileira, quer dizer, o que não sei ou vou ao dicionário ou invento. [risos] Atualmente falo pouco ídiche, porque não tenho com quem falar. Esse grupo praticamente desapareceu. Mas no meu tempo de jovem ainda havia uma forte imigração que falava o ídiche. Além disso, eu frequentava clubes culturais e políticos cuja cultura era em ídiche. E era uma grande cultura.

    No Bom Retiro?

    Era no Bom Retiro, mas não só. Era também no Rio, no Recife. Eram clubes geralmente progressistas, de esquerda, muitos deles ligados ao Partidão [Partido Comunista Brasileiro]. Esse fenômeno refletia o que acontecia na Europa Oriental. O grupo judaico na Europa Oriental, entre outras correntes, teve o Bund, que reivindicava o status de minoria nacional nos países em que viviam. Não era sionista, mas onde tem dois judeus tem três partidos, então logo surgiram também no sionismo correntes de esquerda e de extrema esquerda. A extrema esquerda foi responsável pelo desenvolvimento dos kibutzim em Israel, colônias coletivas. A grande massa populacional judaica não estava na Alemanha, mas na Europa Oriental, Polônia, Rússia, Lituânia, Romênia, Hungria. E dentro dela você vai encontrar todas as gamas das lutas e das definições ideológicas modernas. Todas. Assim como você encontra toda a literatura em ídiche, traduzida do russo, do francês. "O Capital", por exemplo, de Marx.

    Como foi a evolução do seu pensamento político?

    Sempre tive um pé de um lado e do outro. Eu frequentava, quando jovem, por razões familiares, esse lado progressista. Normalmente era gente ligada à ultraesquerda sionista e principalmente ao Pecebão. E lá havia teatro, havia agitprop, tudo o que você pode pensar existia. As discussões culturais não eram somente sobre temas específicos. Toda a política brasileira era discutida. Quando o Estado Novo começou a cair, um dos lugares onde houve grande agitação e trabalho político foi justamente lá. O [escritor] Jorge Amado saiu de uma conversa com o [líder do PCB Luiz Carlos] Prestes e veio dar uma palestra no Progresso, que deu origem à Casa do Povo, na rua Três Rios.

    Por que se chama Casa do Povo?

    As correntes socialistas na Europa fundavam esses centros culturais chamados Casas do Povo. Aqui ela foi construída em memória dos seis milhões de judeus mortos, com contribuições de gente da coletividade. Mas não era uma coisa desintegrada da vida brasileira, pelo contrário. Passavam por ali não só os principais expoentes da cultura ídiche como os da cultura brasileira. A relação era de homem para homem. E não é que havia de vez em quando alguma coisa. A vida política era um dos núcleos. Foi nesse meio que eu me eduquei. O outro foi a rua. Quer dizer, eu não estudei numa escola religiosa, não vivi a vida de um família religiosa. Meu pai era um homem que conservava algumas práticas, mas o que ele viu eu não vi. Ele foi prisioneiro de guerra, teve uma vida muito interessante e sabia contar histórias como ninguém. Era um homem que tinha vivido o mundo.

    Ele foi soldado pela Rússia?

    Foi. A história dele, que há muitos anos eu me prometo escrever e acabo não escrevendo, é muito bonita. Os pais não queriam que fosse para a guerra, isso em 1915, então arrancaram todos os dentes de baixo dele. Mesmo assim, ele disse que queria ver a guerra e se apresentou. E foi para a frente, lutou, ficou prisioneiro nos Alpes, trabalhava nos bondinhos, nos teleféricos. Fugiu sete vezes.

    Nos Alpes?

    Numa das fugas que ele contava, com três ou quatro companheiros, um ou dois rolaram. Ele tem uma vida desse tipo. Eu, quando menino, ficava fascinado pelas histórias. Não estou contando nem próximo. A situação era terrível. Por exemplo, diz ele que, quando foram libertados, no início de 1919, não havia comida. Os austríacos forneceram para eles, no trem, pão feito de serragem. Muitos morreram. Essas eram as histórias que ele contava. Ao lado de outras, como ser denunciado pelos camponeses.

    Por ser judeu? Foi por isso que ele saiu, por perseguição?

    Ele saiu porque a situação econômica lá era difícil. A perseguição estava presente, mas os judeus da Bessarábia eram um pouco diferentes, mais próximos do mundo do campo, mais rudes, menos dados à cultura religiosa. A primeira imigração de judeus para o Brasil, na década de 20, veio principalmente da Bessarábia.

    Qual foi a sua educação?

    Fui alfabetizado em Santos, depois vim para São Paulo e estudei no grupo escolar Regente Feijó, que existe na avenida Tiradentes até hoje. Quando estourou a Revolução de 30, estudava lá. Eu me lembro do dia da revolução, depois da famosa batalha de Itararé... Você sabe que o [jornalista] Aparício Torelly tomou o nome de Barão de Itararé por causa dela, a batalha que nunca houve? [risos] Quando as tropas do [presidente] Washington Luís estavam dispostas em ordem de combate e as do Getúlio [Vargas] tinham vindo do Sul, os militares deram o golpe no Rio e depuseram Washington Luís. E o Getúlio se proclamou vitorioso nessa batalha. [risos] Daí o Aparício tomou o nome. Figura muito engraçada, eu o conheci.

    E comunista.

    Sim. Veja, o comunismo era a opção de esquerda. Principalmente pela figura do Prestes, o comunismo se tornou o centro. Você tem que saber o que o Prestes representou no fim da década de 20 no Brasil. Era o Cavaleiro da Esperança. O filho do Júlio de Mesquita [Filho, que dirigiu "O Estado de S. Paulo" de 1927 a 69] chamou-se Luiz Carlos por causa do Prestes. Era quase uma figura mítica. E de fato, se você olhar a Coluna Prestes, foi uma coisa extraordinária. E não só pelo feito militar, embora esse seja importante, porque todas as forças desencadeadas contra ele não conseguiram nada. Ele andou por três anos no Brasil.

    Prestes foi importante para o sr. também?

    Foi, para mim e para todo mundo. Foi o mesmo processo de mitificação de Fidel [Castro], até em linhas mais puras. Porque era um homem de comportamento absolutamente ético, pelo menos como era visto então. Depois há muita coisa discutível, mas isso já com Prestes dentro do partido. Ele representava uma limpeza ética do tipo que a Lava Jato representa hoje. O movimento tenentista queria uma redenção do Brasil em termos que as cliques dominantes não permitiam. O Prestes foi o cara que surgiu como a expressão disso. E de fato ele era um homem de caráter ilibado. Como todo ser humano, teve grandes feitos e teve erros também.

    O sr. o conheceu?

    Não só conheci como participei. Eu era militante. Não só no campo específico [cultural], aliás, muito pelo contrário. Não vou te contar todas as histórias porque se não você não me entrevista de novo.

    Conta uma.

    Não, mas o que eu posso te dizer é que até a grupo de choque eu pertenci.

    O que é grupo de choque?

    Por exemplo, quando houve o comício Prestes, eu não estava no comício. Estava guardando a rádio Cruzeiro do Sul.

    Para evitar que...

    Fosse atacada. Mas o partidão já naquela época procurava uma frente. Foi a própria possibilidade de êxito político [nas eleições] que levou o governo Dutra a jogá-lo de novo na ilegalidade. O Partido Comunista reunia gente como [o escritor] Graciliano Ramos. Se você pegar a fina flor da intelectualidade brasileira, vai encontrar um número assombroso de pessoas que se declaravam comunistas ou simpatizantes.

    Mas uma marca da Perspectiva é não ser uma editora ideológica.

    Não é.

    O sr. teve uma primeira editora já em 1947, a Rampa. Como foi seu desenvolvimento como editor?

    No final dos anos 1940, eu era um homem com muitas ideias políticas, muita militância, mas não estava, como no livro do Górki, "ganhando o meu pão". Tinha abandonado os estudos, não tinha me definido profissionalmente em nada e não me interessava. É verdade que eu tinha um pai que me sustentava. Todos nós, grandes militantes, temos um pai que sustenta. [risos] Eu não sabia para onde ir, mas era rato de livraria. Uma das que eu frequentava era a Brasiliense, na avenida São João. Pegado tinha o cinema Ritz e do outro lado tinha uma livraria chamada Rocha, onde trabalhava um rapaz aparentado com [o escritor] Monteiro Lobato, Edgar Ortiz Monteiro. O Edgar era o meu papo de balcão de livraria. E num desses papos surgiu a ideia. Como ambos não tínhamos onde cair mortos, começamos uma editora. [risos]

    Ele tinha um primo chamado Carlos, que tinha sido ordenado padre, mas se antecipou à teologia dos pobres e se tornou comunista. Era um homem que sabia latim, grego, alemão, francês, português nem se diz, então também não tinha onde cair morto. [risos] Nos juntamos os três e fundamos a Rampa. Era uma editora de caráter geral, mas começou com um programa específico. Como tinha havido o Holocausto e as coisas do judaísmo, principalmente do judaísmo laico, eram desconhecidas no Brasil, começamos por aí. Mas o nosso programa sempre foi ser uma editora geral. Tanto que entre os nossos amigos, que frequentavam e às vezes dormiam lá, estava o romancista nordestino Paulo Dantas, um antecessor da virada do romance nordestino para o lado místico. Também o [gravador] Walter Levy. Outro era o [Yoshiya] Takaoka, o pintor. Esse era o grupo.

    Bastante heterogêneo.

    Muito. O Carlos Ortiz tinha sido suspenso de ordens e houve um concurso na Folha, para crítico de cinema. Ele ganhou e foi um dos promotores do movimento do cinema brasileiro, um dos caras que trouxeram o [cineasta Alberto] Cavalcanti para cá.

    Mas a Rampa não durou muito.

    Até 1950, 51. Aí, como convém às boas sociedades, os sócios brigaram [risos] e eu acabei vendendo livro de porta em porta e nas calçadas. Outra parte foi vendida pelo Polano. Era um cara que pegava os saldos de livro e vendia no viaduto do Chá, na praça do Patriarca. Nós tivemos companheiros ilustres. A Ipê foi uma editora paulista de grande porte, que editou todo o Pirandello logo depois da guerra, e acabou como nós.

    Vendendo livro na rua.

    De gente importantíssima. Acho que só a Companhia das Letras ou outra tem hoje esse porte, tal era a importância dela. E nós acabamos como vizinhos na calçada, o que me honrou muito, naturalmente. Também fui ao Rio vender livro de porta em porta, para saldar as contas. Não vou entrar em quem estava com a razão, porque cada um tem as suas. Foi isso. A Rampa era uma editora que pretendia editar o romance brasileiro, o Dantas e outros que apareciam lá. Infelizmente, só editamos quatro livros.

    Como nasce a primeira editora Perspectiva?

    Nasce de um amigo meu de juventude, que estava muito bem de vida e então resolvemos fazer uma editorazinha. Eu trabalhava já, naquela época, na "Brasil-Israel", que é uma revista da irmã do [jornalista] Samuel Wainer.

    Nascido na Bessarábia.

    Exato. Aliás, cuja nacionalidade foi restituída pelo [político, jornalista e editor] Carlos Lacerda numa campanha memorável, que vai entrar para os fastos da nacionalidade. [risos] O Samuel era um grande jornalista. Agora, como todo grande jornalista, era um grande sem-vergonha também. [risos] Depois dessa Perspectiva inicial, trabalhei dez anos na Difusão Europeia do Livro [Difel] e, quando saí, não pensava em continuar na vida editorial, que sempre me interessou relativamente. Meu interesse maior era jornalismo etc. Mas aí alguns amigos se encarregaram de me convencer de que não havia jeito, então voltei, com o nome Perspectiva.

    De onde vem o nome?

    Como sou casado com uma matemática [Gita], eu fiquei na geometria, na geometria projetiva. Foi por essa razão, simplesmente. Nós tivemos apoio de muita gente boa. Quer dizer, apoio intelectual, porque na hora de [investir] você transpira sozinho.

    Como o sr. vê o papel de um editor?

    Olha, é extremamente variável. Você tem uma gama de editores, todos igualmente válidos. Tem o que está interessado culturalmente, hoje normalmente é um editor acadêmico, se ligou muito às universidades. Tem o editor grande empresário, cujo interesse no livro, por cultural que seja, é como mercadoria. Antes as duas funções estavam mais misturadas, basta ver dois exemplos, um é o Lobato na Brasiliense, o outro é Martins Fontes. A livraria Martins teve um papel importante em São Paulo. Eu venho de uma família de comerciantes, então sei com o que estou lidando. Mas o meu interesse e do grupo que estava comigo não era esse. Quando comecei a Perspectiva, já tinha uma certa idade para não ser escravo dos modismos.

    Como é o lado empresarial da Perspectiva?

    É bastante rudimentar. Não digo que inexiste; aliás, ele tem melhorado bastante depois que eu passei a estar aqui honorificamente. [risos] A minha esposa, a Gita, mais o meu sobrinho, o Sergio [Cohn], estão trabalhando com o dia-a-dia. E nós temos uma equipe de gente próxima, muitos dos quais começaram como eu, não sabendo nada de editora, e depois foram se desenvolvendo. Às vezes um editor entra no trabalho porque está precisando ganhar a vida e vai se apaixonando pelo que faz.

    Foi o que aconteceu com o sr.?

    Eu não sei se é paixão ou vício, no meu caso. [risos]

    E vai para 70 anos.

    Bom, eu fiz intermitentemente, mas tinha outros interesses também, como o período que passei colaborando no "Estadão" e outros jornais. Sempre tive interesse em escrever. O que você tem aí [aponta o livro "Boca de Cena"] são as migalhazinhas que a gente vai deixando no curso da vida.

    O sr. fez doutorado com [o crítico e professor] Antonio Candido como orientador?

    Foi o pecado da vida dele. [risos]

    Qual é a influência?

    Eu tenho duas admirações. Uma chama-se Antonio Candido, e a outra, Haroldo de Campos [poeta, crítico e professor]. Como eles combinam, não me pergunte. Aliás, eles combinam em muita coisa. Haroldo foi orientando de Candido. Depois eles discordaram, e sempre tem mulher no meio. [risos] Antonio Candido é uma grande voz. Eu reverencio o trabalho dele, acho importantíssimo. Agora, não existe trabalho que não mereça debate crítico. Se não merecer debate, não presta. Então, há aspectos no sociologismo de Candido que podem ser discutidos. Como há aspectos no estruturalismo de Haroldo que podem ser discutidos. Até que ponto a sociologia influi num, e a estética influi noutro? Os dois tentaram resolver o problema, eles sabem perfeitamente disso.

    [pausa] A vida, ao mesmo tempo em que é grande mestra, é muito madrasta. A gente vai perdendo uma porção de coisas. A minha geração se foi. O meu diálogo atualmente é com pouquíssimas pessoas. É outra geração. Algumas das visões que ela tem são ligadas àquilo que a gente pretendia, outras já ultrapassam. Por exemplo, no teatro: querer levar o teatro exclusivamente para o campo performático é estupidez. O teatro é uma integridade, que vai desde a tragédia grega até a performance.

    Uma característica dos seus ensaios sobre teatro é que o sr. sempre valorizou espetáculo, não só texto. O sr. é menos textocêntrico do que [os críticos e professores] Sábato Magaldi ou Décio de Almeida Prado?

    Perfeitamente, perfeitamente. O teatro só se completa quando o ator diz "Ah". Antes, não está completo. Pode estar completa a literatura dramática, que para mim tem valores próprios. Mas sua potencialidade e a realização final são no palco. No teatro escrito você tem o recurso da imaginação, mas a imaginação incorpora apenas em termos muito diluídos. Teatro é corpo a corpo. O fenômeno teatral não se dá na minha leitura. Já o teatro performático leva para a outra ponta, quer expulsar a literatura dramática.

    Esse pensamento se reflete, por exemplo, na "História do Teatro Brasileiro" [Perspectiva, 2012/13], que o sr. coordenou junto com [o crítico e professor] João Roberto Faria. É uma história a partir do espetáculo.

    Sim. Toda história do teatro brasileiro, até determinado momento, era escrita a partir da dramaturgia. Os valores consagrados eram os da palavra literariamente estruturada. Porém estava reduzida ao leitor. Ora, o teatro não se faz no leitor. A meu ver, existe um ponto de partida teatral na leitura, desde que o leitor faça projeções imaginativas. Mas o teatro, como eu disse, só se realiza quando o ator diz "Ah".

    O sr. nunca escreveu, dirigiu ou atuou peças teatrais?

    Não, eu caí no teatro por acaso. Vi desde muito jovem, mas isso todos nós, classe média, vagabundo quando jovem, fazíamos. Sempre tive uma certa proximidade, mas não me sentia destinado a interpretar papéis. A partir de certo momento, comecei a escrever sobre determinadas coisas e alguns dos meus amigos houveram por bem achar que eu era crítico. Entre os quais esse moço aqui [aponta foto]. Esse é o Anatol.

    Como o sr. conheceu [o crítico e professor] Anatol Rosenfeld?

    Foi em 1953, por aí. O Anatol era jornalista da "Crônica Israelita". Eu lidava desde certa época com ídiche, fui fazer uma palestra sobre a língua e o Anatol apareceu para dar uma notícia na "Crônica", que era da Congregação Israelita Paulista, alemã. Onde tem dois judeus tem três partidos. [risos] Os refugiados da Alemanha fundaram a congregação, que tem um rito liberal. Ela se aproxima das formas rituais protestantes. A forma ortodoxa não tem esses coros, embora no templo existisse o coro dos levitas. Bom, é uma mixórdia dos diabos. [risos]

    Eu o convidei para jantar. Morava nesta casa e o recebi aqui, deste lado tinha uma mesa [aponta]. E começamos a conversar. Era um homem extraordinário. Não só do ponto de vista de conhecimento como da vivência. Ele veio para cá como imigrante ilegal e foi trabalhar no campo. Foi colono, depois caixeiro viajante, viajou pelo Mato Grosso. Anatol estava preparando o doutorado na Alemanha quando teve que sair, porque na Olimpíada de Berlim um turista perguntou uma coisa e ele respondeu em francês. Tinha um policial perto, que o prendeu, e ele foi citado em juízo. Ele sabia que, se fosse a julgamento, iria para campo de concentração, então foi embora. Era um cara que conhecia latim, grego, francês etc. E além disso gostava de cachaça. E apreciava particularmente as mulatas. [risos]

    Foi ele que aproximou o sr. do teatro?

    Não, antes eu já tinha traduzido "O Dibuk" [Perspectiva, 1952]. A peça do An-Ski é uma obra-prima do teatro ídiche. Ele foi um dos dirigentes do Partido Socialista Revolucionário da Rússia, metido no movimento anterior à Primeira Guerra. Quando estourou a revolução, foi deputado; quando os bolcheviques assumiram, teve que fugir. Mas antes disso era um interessado em etnografia e folclore. Pouco antes da guerra, fez uma expedição às regiões mais habitadas pelos judeus na Europa Oriental e colheu elementos da cultura popular, entre os quais as histórias que formam "O Dibuk".

    O que também me aproximou do teatro foi que eu escrevia sobre letras judaicas no "Suplemento Literário", do "Estadão", e fiz ali uma série sobre o Habima, um teatro judaico fundado na Rússia, que ainda existe em Israel, ligado naturalmente a Stanislávski, Meyerhold. Os artigos chamaram a atenção, principalmente do Sábato. Quando o Décio brigou com o Alfredo Mesquita por causa da Escola de Arte Dramática, porque Alfredo [diretor da EAD] não queria incorporá-la à universidade, a cadeira de crítica teatral ficou vaga. Anatol, amigo de Alfredo, e Sábato, de quem eu me tornara amigo, me indicaram como professor, aí eu comecei. Foi um desafio. Eu era um espectador já mais velho, tendo assistido a uma porção de coisas na França, Ionesco no Théatre de la Huchette, o Gérard Philipe, todo esse pessoal, mas não era um especialista. Como não sou até hoje.

    O sr. escreveu um texto muito citado, de referência, sobre Cacilda [Becker, atriz e professora da EAD], sobre interpretação.

    Sim, eu e a Maria Thereza [Vargas, pesquisadora]. Eu fiquei na EAD por causa da Maria Thereza, porque o Alfredo, do alto dos seus quatrocentões, olhava, principalmente para mim, com um olhar bastante crítico. E eu não estava pensando em ser professor nem tampouco em me ligar definitivamente. Meu campo era a literatura, onde eu já tinha escrito sobre Graciliano [Ramos], a figura que mais me tocou na época, sobre Jorge [Amado], Rachel de Queiroz, esse pessoal todo. Não era, portanto, o teatro. Mas eu comecei a dar aula e, com essa ligação, o que eu não sabia os alunos sabiam. Foi uma troca.

    O sr. comentou que muitos dos seus interlocutores morreram, Anatol, Sábato, o próprio Décio.

    Sem dúvida, mas a minha maior interlocução não foi com eles. Foi com os meus alunos.

    Lembre de alguns.

    Tem muitos. Tem Tó [Antonio Araújo, diretor], Cibele [Forjaz, diretora], a Maria Thaís [diretora]. Tem vários antes. Tem o Possi [José Possi Neto, diretor]. Ele saiu do jornalismo e foi para o teatro numa aula minha, no primeiro curso que dei, quando fui chamado pelo departamento de teatro [da Escola de Comunicação e Artes]. Possi era um número, atrevido como ele só.

    Como é o diálogo, por exemplo, com Antonio Araújo? Você discordam?

    Às vezes, mas na minha abordagem eu tento não fazer imposição de ideias. E o Tó é um crítico muito fino. Ele é tão bom na crítica quanto é na direção. E algumas preconcepções, por exemplo, a utopia do processo colaborativo... Ele mesmo acabou achando que, afinal, a direção faz alguma coisa. [risos]

    E João Roberto Faria, que tem sido seu parceiro em muitas publicações, como "O Naturalismo"?

    Muitas. Eu comecei com o João Roberto na posição de examinador chato, no mestrado dele. Até o Décio [orientador de Faria] não gostou nada da minha exposição. [risos] Mas o João Roberto é um pesquisador de primeira qualidade e um homem do maior valor ético, e é isso o que importa. Eu não levo em conta as eventuais ideias contrárias às minhas, mas a qualidade da pessoa. Ele pode até discordar de mim, mas aí é uma outra coisa. Nós discutimos bastante.

    Eu tinha um grupo de estudos de pós-orientandos, do qual faziam parte o Tó, a Maria Thaís. Nós nos reuníamos em casa e discutíamos não só teses, mas as ideias teatrais no plano geral. Foi uma coisa boa, porque evidentemente o fato de eu ser orientador não significa que eu tenha solução para todas as questões nem sequer para algumas. Não tenho. O que tenho são as minhas ideias. São minhas? Não, eu as colhi na literatura, no contato, roubei de outras pessoas. Não existem ideias próprias, existem formulações e palavras. Você acha que Platão foi só ele, fantástico que seja? Não, ele roubou dos sofistas. Esse é o comércio das ideias.

    O sr. não orienta mais?

    Larguei a bota. A Míriam [Rinaldi, atriz] foi minha última orientanda, no ano passado. Veja, estou aposentado há muito tempo. Por razões físicas, estou quase impossibilitado de assistir a espetáculos constantes. Atualmente só posso orientar, digamos, num plano mais retroagido. E não acho certo. Agora, eu tive 30 orientandos, a [crítica e professor] Silvia Fernandes, a Ingrid [Koudela, crítica e professora], com quem trabalho ainda hoje.

    Sobre a editora, o sr. está preparando alguém?

    Um sucessor? Para o meu sucessor, a primeira coisa que eu diria é: "O diabo que te carregue". [risos] Não, já está havendo... Primeiro, a minha atividade se reduziu. A Gita assumiu. Ela foi professora da física, assistente do [físico Mario] Schenberg, agora está aqui. Ela tem temperamento muito mais executivo do que o meu. E tem o Sergio [Kon], que está entrando.

    E é um ofício, não é? Que se transmite.

    É um ofício que exige grande especialização. Agora, tem o perigo de ser demasiado ofício para quem o exerce, porque o cara perde a noção da perspectiva cultural. A Perspectiva não é nem poderia ser editora de best-seller. Nós não editamos grandes romances não foi por... Eu não editei "O Nome da Rosa". Estava na minha mão, mas eu não tinha dinheiro. Foi uma grande falha minha, como editor. Todo mundo me joga isso na cara. Eu acho Eco um romancista relativo. Os tipos dele são fixos, não têm análise psicológica mais profunda. Mas isso não é dor de cotovelo transformada em crítica. [risos]

    Qual é a perspectiva para o mercado editorial brasileiro, hoje?

    Tivemos vários fenômenos. Primeiro, os meios eletrônicos introduziram uma novidade. A pequena livraria não está despojada de seu papel, mas ele se reduziu bastante. Nós nunca tivemos uma corrente efetiva de livrarias. Não existia essa coisa, por exemplo, da França, em que a [editora] Gallimard vende para os livreiros, não põe em consignação. Nunca tivemos isso. Agora a venda por internet reduziu o poder de fogo das pequenas livrarias, tornando as grandes os principais clientes das editoras. E as grandes livrarias sofreram com duas coisas: a redução do poder de compra, decorrente da crise econômica; e uma parte delas começou a vender também por via eletrônica, porém sem todo o "know how" da Amazon. As pequenas editoras se tornaram reféns dos grandes grupos de livrarias, que trabalham com o capital dessas editoras e, na crise, adiam pagamentos. Pagar, pagam, mas manipulam à sua vontade. A dependência se tornou muito maior. Ou você parte para um sistema em que possa ter independência, pela relação direta com seu leitor, ou você fica preso.

    Como é que o sr. se define politicamente, hoje?

    Eu me defino à esquerda da esquerda da direita. Atualmente, não sou partidário de definições muito estritas, por causa do formalismo delas. As próprias palavras se desmentem.

    E religiosamente?

    Eu sou, infelizmente, meio ateu, graças a Deus. Não sou praticante, não. De vez em quando guardo, por razões culturais, uma ou outra festividade religiosa. Pessoalmente nunca fui.

    NELSON DE SÁ, 56, é repórter especial da Folha

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