RESUMO Texto mostra como o imaginário estrangeiro sobre o Brasil não sofreu mudanças significativas desde o retrato feito pelos primeiros viajantes, no século 16. Sensualidade e exuberância natural continuam a ser as linhas mestras, agora acrescidas do diagnóstico de um ator político irrelevante na cena global.
Alex Kidd/Folhapress | ||
Colagem a partir de obras de Albert Eckhout |
A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, dois eventos pensados para projetar internacionalmente a imagem de um Brasil moderno e em plena ascensão, acabaram atropelados pela realidade da crise no país. Mesmo que ambos tenham sido relativamente bem-sucedidos, sem registros de incidentes graves, a cobertura das competições acabou revelando o quanto o resto do mundo ainda vê o Brasil sob o prisma de clichês e estereótipos, alguns deles formados há séculos.
Um levantamento realizado em 2014 no King's College de Londres revelou que 80% dos registros da imprensa internacional usaram lugares-comuns para descrever o país-sede da Copa. Outra pesquisa, feita na Universidade Goldsmith, mostrou que a rede britânica BBC quadruplicou as menções ao Brasil durante a competição, mas que o teor das notícias era predominantemente negativo, enfatizando os problemas do país.
O "Brazil bashing" (expressão em inglês que denota críticas incisivas e reincidentes) se repetiu em 2016, quando a Olimpíada foi com frequência descrita como uma grande festa que visaria a ofuscar as falhas de organização e de estrutura da cidade-sede.
Por mais que os dois eventos globais possam ser enquadrados em uma tentativa moderna de trabalhar a marca internacional do Brasil e de promover sua reputação no exterior, muito do que se pensa a respeito do país no resto do mundo está preso a concepções talhadas séculos atrás.
Alguns desses clichês, como o do espírito festeiro, surgiram apenas em meados do século passado, enquanto o Brasil desenvolvia e consolidava sua identidade nacional, mas estudos recentes na academia europeia indicam que parte das imagens mais fortes do país no exterior nos dias atuais começou a integrar o repertório do Velho Mundo desde pouco tempo depois da chegada dos portugueses por aqui, nos séculos 16 e 17.
Segundo pesquisadores que estudam alguns dos primeiros relatos a descrever o país, é possível ver desde aquela época a construção da representação do Brasil que se consolidou e que persiste até hoje.
O exotismo e uma visão preconceituosa e superficial do Brasil como uma nação aquém do desenvolvimento alcançado pelo Ocidente, bem como a associação do país a noções como a de sensualidade, são percebidos pelo professor da Universidade de Leiden, na Holanda, Michiel van Groesen, e pela pesquisadora brasileira Vivien Kogut Lessa de Sá, da Universidade de Cambridge. Ambos estudam relatos de europeus sobre o perímetro tropical nos primeiros séculos após a chegada dos portugueses.
"Existe uma dicotomia na forma como os europeus veem o Brasil atualmente", explicou Van Groesen, autor do livro recém-lançado "Amsterdam's Atlantic: Print Culture and the Making of Dutch Brazil" (Atlântico de Amsterdã: a cultura impressa e a construção do Brasil holandês, University of Pennsylvania Press), em entrevista à Folha. "Eles acreditam ter superado o colonialismo, se acham modernos e ocidentalizados, enquanto o Brasil e o resto da América Latina não lhes parecem bem preparados para o futuro", disse.
A avaliação do pesquisador holandês se assemelha ao que sugerem estudos internacionais sobre a reputação global do Brasil. Segundo as principais pesquisas de "nation branding", como o Nation Brands Index e o ranking Best Country, o país costuma ser bem avaliado em tópicos ligados a cultura, sociedade, opções de turismo e lazer. O calcanhar de Aquiles está no reconhecimento externo como nação séria, com relevância política e econômica para o resto do planeta. Trata-se de um país "decorativo", nos termos de um dos principais pesquisadores do tema, Simon Anholt.
Segundo Van Groesen, o que se viu na imprensa europeia nos últimos dez anos é uma confirmação disso. "São reportagens sobre corrupção, sobre a Copa do Mundo não ter sido concebida de forma apropriada, sobre a Olimpíada desorganizada no Rio. Essas ideias superficiais dominam a forma como os holandeses pensam o Brasil", explicou. Para ele, é uma questão que vai além da ideia de estereótipo; incorre-se pura e simplesmente no preconceito.
Van Groesen aponta como marco zero da difusão desse equívoco as publicações da imprensa europeia do século 17, sobre as quais se debruça há uma década –e que deram origem ao livro que acaba de publicar. Ele estudou as descrições do Brasil antes, durante e depois do período em que os holandeses dominaram o Nordeste do país, entre 1630 e 1654.
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Colagem a partir de obras de Albert Eckhout |
A Holanda invadiu o Brasil por conta da disputa geopolítica durante sua guerra contra a Espanha (então unida a Portugal). Navios do país zarparam para a América orientados por conhecimentos sobre o território recém-descoberto sacados sobretudo de relatos de franceses. Depois que conquistaram o Nordeste brasileiro, no entanto, os holandeses buscaram conhecer o território melhor e divulgar pelo resto da Europa o que descobriam na colônia.
"Eles se interessavam extremamente pelas oportunidades que a paisagem local oferecia, pela vegetação exótica, pelo potencial medicinal que poderia ser encontrado no Brasil. Esse é o tipo de coisa que começa a chamar a atenção depois que a disputa militar se consolida", diz Van Groesen.
BRASIL NU
O realce dado ao exotismo quando se perfila o Brasil na Europa prevalece até hoje, segundo a professora Lessa de Sá, e já aparecia nos primeiros relatos de portugueses e ingleses em viagem ao Brasil dos séculos 16 e 17.
"Hoje ainda se salienta a 'proverbial beleza das mulheres brasileiras', a afabilidade e a espontaneidade do povo, um ar singularmente relaxado e as onipresentes belezas naturais. Ao lado disso, há um subtexto de bestialidade, de primitivismo, que inspira encantamento e repulsa ao mesmo tempo", explica.
Para ela, destacam-se as ideias batidas da hipersensualidade e da sexualidade, da falta de vergonha, da extroversão alegre, de um certo descontrole, que aparece desde a carta de Pero Vaz de Caminha. "Ficou um estereótipo que se retroalimenta. Nos primeiros relatos, há uma ênfase enorme na sensualidade", diz.
A raiz desse arquétipo reside no choque produzido pelo encontro entre os europeus e os habitantes da América tropical. A nudez do indígena, explica Lessa de Sá, surpreende e deixa sua marca na forma como o Brasil é interpretado pelo resto do mundo desde então.
Isso acontece porque os europeus da época tinham no vestuário não apenas algo que servia para "cobrir as vergonhas" mas o maior indicador de identidade. "Para os europeus, uma sociedade despida significava uma sociedade em que estavam ausentes os principais elementos ordenadores: hierarquia, riqueza, controle", explica ela. A roupa designava gênero, classe, profissão, nacionalidade, status social e idade.
"É sintomático que esta seja a primeira impressão dos índios que se acha em quase todos os relatos, desde Colombo: as primeiras palavras sobre os indígenas serão sempre 'andam nus', seguidas da cor da pele.
Fica aí impressa, até hoje, a imagem de que uma das maiores características da América tropical é precisamente o seu despudor", afirma a professora.
Lessa de Sá desenvolve há quase dez anos pesquisas que resultaram na coletânea de 12 relatos de viajantes ingleses que estiveram no Brasil entre os séculos 16 e 17 e descrevem o país nascente. O título do trabalho, ainda sem editora, é "Viajantes Ingleses no Brasil: 1526-1608".
A maioria desses relatos permanece desconhecida do público brasileiro. São cartas, diários e outros depoimentos que descrevem o país e deixam entrever muito sobre a forma de pensar e ver o mundo do próprio autor, enquanto ele narra eventos e descreve características da nova terra.
Segundo a pesquisadora brasileira, a imagem do Brasil transmitida pelos ingleses dessa época se ancorava na riqueza natural da terra e no exotismo dos indígenas. Em seguida, a tônica passa a ser o capital, leia-se, as promessas de riqueza no comércio do açúcar e as notícias vagas sobre possibilidades de ouro –culminando em uma atitude predatória, frequentemente acompanhada de verdadeiro ódio aos portugueses, vistos como indignos de serem "donos da terra".
"Ao contrário de outros relatos europeus dessa época muito mais conhecidos entre nós, esses não envolvem uma leitura religiosa daquilo que é testemunhado", compara a pesquisadora.
MÍDIA EUROPEIA
Os relatos produzidos por viajantes nos dois primeiros séculos após a chegada ao Brasil gozavam de forte apelo junto ao público europeu, segundo Van Groesen. Apesar de os megaeventos esportivos dos últimos anos serem tratados como uma tentativa de atrair os holofotes de uma mídia internacional nem sempre interessada pelo que acontece no Brasil, ele lembra que o país já havia sido foco importante da imprensa europeia no período colonial.
"Se você mencionasse a palavra Brasil entre os anos 1630 e 1650, todo mundo sabia que fazia parte de uma grande disputa geopolítica entre protestantes e católicos que vinha acontecendo na Europa havia décadas", diz o professor.
A invasão do Nordeste pelos holandeses ensejou uma cobertura frenética sobre o Brasil Colônia na imprensa baseada em Amsterdã. Como a cidade na época era um dos centros de irradiação de conhecimento para a Europa, as descrições sobre o Brasil ganhavam o continente. "Nos anos 1630, a cobertura holandesa sobre o país era traduzida para o francês, para o alemão e para o inglês, levando a história a uma audiência mais ampla", conta Van Groesen.
Esse vívido interesse seria impulsionado pelas mãos de Maurício de Nassau, que governou a província holandesa baseada em Pernambuco. "Ele queria que sua visão positiva sobre o Brasil se espalhasse, e foi muito eficiente em fazer isso não apenas na Holanda, mas em toda a Europa, por meio de pinturas, descrições e tratados científicos."
A parte intrigante –e decepcionante– dessa história, pondera o professor, é que os europeus não estavam tão interessados nos habitantes indígenas dos trópicos, em seus hábitos e práticas. Antes de tudo, viam o Brasil como um mero objeto a ser explorado. Por isso é que os relatos pesavam a mão no exotismo, deixando de lado menções a temas mais candentes da realidade local.
"Os europeus não se interessavam em discutir a ascensão do tráfico de escravos, que também é parte da história do Brasil Holandês. Essas reportagens, sobre africanos e indígenas, não achamos na mídia holandesa da época", afirma Van Groesen. "Já vemos ali os primórdios de uma concepção que privilegiava os interesses europeus nas Américas, com silêncio significativo em relação a partes da história tidas como dolorosas ou desumanas demais –ou simplesmente irrelevantes."
Apesar da ampla cobertura da imprensa holandesa por mais de duas décadas no século 17 e do trabalho de divulgação de Nassau, a Holanda não tardou em apagar de sua história o período em que dominou o Nordeste –era uma forma de fugir da vergonha da derrota para os portugueses e de esconder o que foi visto como um vexame, nas palavras de Van Groesen.
"O que mais encontro é a ignorância. Os holandeses hoje sabem muito pouco sobre o Brasil, então a imagem não é muito bem definida. Além disso, veem a América Latina como um território desprovido de proeminência na órbita política internacional."
PRECONCEITO
A desinformação a respeito da realidade brasileira e a combinação tóxica daquela com o preconceito pautariam por séculos a conformação da "marca Brasil".
Muito antes de pesquisas do que se chama hoje de "nation branding" sobre a reputação dos países no resto do mundo, os primeiros levantamentos realizados nos Estados Unidos a respeito do Brasil e da América Latina, nos anos 1930 e 1940, aferiram "desconhecimento e ignorância impressionantes" a respeito dos vizinhos de continente, segundo um relatório da época.
Com o passar do tempo, as informações sobre o Brasil começaram a se espalhar com mais celeridade –mas a intensificação desse fluxo não foi capaz de desarmar de todo a coleção de clichês.
Segundo o historiador britânico Leslie Bethell, a difusão de informações sobre o Brasil cresceu no século 19 porque a divulgação internacional foi alçada a prioridade do Império; a independência do gigante sul-americano precisava ser alardeada nos quatro cantos do mundo.
Em um estudo sobre o que se conhecia do Brasil no mundo no século 19, Bethell indica que relatos de diplomatas, oficiais navais, naturalistas, exploradores, missionários, jornalistas e viajantes que passavam pelo país se disseminavam em forma de livros pela Europa e pelos Estados Unidos.
Enquanto o pintor francês Jean-Baptiste Debret se consolidava na Europa como o principal artista a retratar essas terras com seus volumes de "viagens pitorescas e históricas", nos anos 1830, naturalistas como Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates se empenhavam em ir além das cidades costeiras para conhecer o lado mais selvagem da floresta na Amazônia.
Além desses textos, a segunda metade dos anos 1800 foi marcada por participações brasileiras em exposições internacionais, que buscavam vender ao mundo os contornos de um país moderno –ainda assim, a natureza e o apelo exótico eram os trunfos dos pavilhões tupiniquins.
O Brasil esteve representado em Londres em 1862, em Paris em 1867, em Viena em 1873, na Filadélfia em 1876 e de volta a Paris em 1889, meses antes da Proclamação da República.
Segundo Bethell, nesta última o Brasil se apresentou como "grande império da América do Sul" e foi tratado como uma nação "civilizada e progressista", se comparada à realidade que existia então nos Estados Unidos.
As exposições, especialmente a de Paris em 1889, acabavam reciclando imagens gastas do Brasil, mas o país ficava longe do tratamento depreciativo reservado a colônias europeias, segundo a pesquisadora Heloisa Barbuy, da USP. Em vez de ser associado a uma nação de humanos em estado primitivo, o Brasil era tratado como um futuro gigante da economia mundial. Daí vêm os primeiros esboços da ideia do Brasil como um "país do futuro".
A virada para o século 20 também ampliou o espectro de olhares estrangeiros sobre o Brasil; os EUA, ator então ascendente na cena global, também davam seus pitacos.
Exemplo disso foi "Nas Selvas do Brasil" (1914), livro escrito pelo ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que embarcou numa expedição científica de quase dois meses pela floresta tropical, acompanhando o coronel Cândido Rondon. Ele buscava justamente o exotismo da selva inexplorada.
Na obra, é possível perceber uma mistura entre a narrativa do Brasil exótico e uma mais nova, de um Brasil moderno. Se por um lado o ex-presidente trata a grande incidência de cobras venenosas como algo marcante no país, por outro ele ressalta que já havia em São Paulo um instituto de pesquisas especializado em desenvolver antídotos ao veneno desses répteis (o atual Butantan).
Ainda assim, são os relatos da natureza insólita e selvagem que dominam o livro. "Nenhum homem civilizado, nenhum homem branco, havia jamais navegado por este rio ou visto o país pelo qual estávamos passando", contaria mais tarde, ecoando o tom de desbravador dos primeiros relatos de europeus que haviam chegado ao Brasil no século 16.
As pesquisas de opinião pública sobre a América Latina realizadas décadas mais tarde nos EUA ajudariam o governo local a definir políticas públicas para a região vizinha –especialmente por conta da crescente ameaça da Segunda Guerra Mundial. A mais reveladora dessas sondagens tentava descobrir o que os norte-americanos pensavam e sabiam a respeito do resto do continente. Foram ouvidas 4.220 pessoas em dezembro de 1940.
Quase um terço dos entrevistados se disse incapaz de citar o nome de qualquer país da América Latina. Entre os que conheciam os países do continente, o Brasil era o mais mencionado –escolha de 43% dos ouvidos.
Além do desconhecimento, a pesquisa mostrou a incidência de forte preconceito. Os americanos "têm a ideia de que todos os sul-americanos são meio índios e dormem a tarde inteira. Eles não percebem que os países têm vida industrial. Imagino que a maioria das pessoas pensa que os sul-americanos dançam rumba em vez de trabalhar", escreveu Hadley Cantril, um dos pesquisadores envolvidos no projeto.
Cantril se dizia preocupado com o arquétipo "altamente negativo" que os americanos associavam aos vizinhos: "Algo como uma pitada de gigolô com muitos elementos de preguiça, analfabetismo, atraso cultural e falta de higiene".
Na época, os próprios pesquisadores recomendavam um trabalho de comunicação de massa para ajudar a divulgar informações e conhecimento sobre o continente.
No século 21, a hipertrofia da comunicação de massa diminuiu o nível de ignorância global a respeito do Brasil. Nos últimos anos, o país tem aparecido em torno da 20ª colocação em rankings que apontam as nações mais conhecidas e admiradas do mundo, com base em pesquisas de opinião pública. Essa afeição internacional, no entanto, ainda se apoia em um conjunto de estereótipos mais ou menos incômodos.
DANIEL BUARQUE, 35, é jornalista da Folha
ALEX KIDD, 31, designer da Folha, escreve no blog 120 BPM, no site do jornal