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    Leia conto inédito de Frei Betto sobre um plano de fuga da cadeia

    FREI BETTO

    05/02/2017 02h00

    Por responder à advertência de Leão, chefe da carceragem, espancaram-no durante meia hora. Naquela noite, não dormiu. Agarrado às barras de ferro da cela, manteve os olhos perdidos na própria imaginação: o dia de festa no salão nobre da penitenciária, o representante do senhor governador, o secretário de Justiça, o juiz corregedor, o delegado-geral do Estado"... O corpo, colado à grade, suava excitado por tudo que fervilhava em sua cabeça, a visão da cerimônia, ele se erguendo de repente da cadeira, revólver à mão, atirando em Leão e em mais dois ou três carcereiros, sequestrando autoridades, a exigência de um helicóptero e, enfim, o voo para a liberdade.

    Eduardo Knapp/Folhapress

    Na manhã seguinte, o plano de fuga amadurecera na cabeça daquele homem preso havia 13 anos, condenado a 64 por dois latrocínios. Primeiro, obter o principal: a arma. Tonhão trabalhava na alfaiataria, orientado por mestre João, velho funcionário prestes a se aposentar. Ao se aproximar da mesa de mestre João, sussurrou: "Vou te entregar pro diretor". "Qual é, malandro?", indagou assustado o velho, espichando os olhos por cima das lentes brancas dos óculos que escorregavam nariz abaixo. "Tá de acordo com os home, negão?". "Se guenta aí, cara, sou bandido e você é polícia. Não confunde as partes, não."

    Esse o papo de todos os dias. Tonhão ameaçava entregar o funcionário que introduzia maconha e outras drogas no presídio, mestre João em pânico, imaginando o escândalo, a reação do diretor, a demissão. "Pelo amor de Deus, negão, não estraga meu fim de vida. Diz o que quer de mim; sabe que, podendo, faço."

    Queria levá-lo ao desespero, até mestre João chegar no ponto. Não demorou muito. Na semana seguinte, o aprendiz de alfaiate deu a cartada final: "Só não te entrego se me trouxer uma máquina com caixa de balas".
    Disto mestre João tinha certeza: Tonhão fazia o que falava. Era escolher. Ser denunciado ou levar a arma, confiando que, mesmo sob tortura, o preso jamais o entregaria.

    O 38 ingressou na penitenciária dentro da pasta de mestre João, isento de revista. Cobra criada, o preso sabia que não podia ficar com o revólver em seu poder. O mais indicado seria confiá-lo a um companheiro que fosse tão vaidoso quanto medroso. Ficaria orgulhoso de ter em seu poder, ali dentro, uma arma de fogo.

    Matador, condenado a mais de cem anos, decepcionava os que privavam de sua convivência. De tão medroso, sempre assassinara as pessoas que assaltara, com medo de reagirem ou encontrarem um meio de se vingar.

    Tonhão julgou Matador o homem adequado para esconder o revólver: tinha um comportamento exemplar, não era visto com desconfiança pelos carcereiros, não possuía suficiente ousadia para tentar a fuga sozinho e nem era covarde o bastante para entrar em acordo com a direção.

    Matador remetera à alfaiataria uma bola de futebol para ser costurada. Foi dentro dela que recebeu o 38. Na cela, escondeu-o no fundo falso do assento do tamborete de madeira.

    Ao ruminar o plano, Tonhão viu-se tomado por uma interrogação: e se a arma for encontrada e Matador der com a língua nos dentes e me entregar? Era preciso um bom álibi para preservar mestre João.

    Domingo, dia de visitas, Ifigênia viria vê-lo. Sabia que ela já era de outro, e ela sabia que ele sabia. Tonhão fingiu juras de amor e disse ao ouvido dela: "Tenho uma máquina enrustida aqui dentro. Pode ser que caia.
    Não quero complicar a vida de ninguém, mas, se acontecer, levo um polícia desses pro brejo. Preste atenção. Dando azar, jogo a seguinte cascata: já tinha essa arma lá em casa e aqui, na visita, eu disse onde estava guardada e que mandaria um loque apanhar o berro no barraco. Você, tendo recebido a dica, entregou ela ao loque, como mandei. Mas o nome do distinto você não sabe, nem o que faz. Sabe a cara, é claro, porque viu o cara lá no nosso chão de estrelas. Pois bem, vou te mostrar um loque aqui dentro. Guarde bem a fuça dele. Qualquer sujeira, foi ele quem buscou o tresoitão".

    Tonhão indicou, e Ifigênia fotografou na memória o rosto de Leão, o carcereiro-chefe, odiado pela massa carcerária.

    Cinco meses depois, Matador foi conduzido ao fórum. A guarda aproveitou a ausência para dar uma batida em sua cela. Arrancou das paredes fotos de mulheres nuas, cortou os barbantes que serviam de varal, levantou o assoalho de madeira com um pé de cabra, enfiou um arame pela privada, pela boca da torneira, pelo ralo, desatarraxou a lâmpada do teto, bateu nas grades para ver se estariam sendo serradas, quebrou o tamborete de madeira. O 38 correu pelo chão sob o espanto dos guardas.

    Duas horas depois, banhado em sangue, os órgãos genitais roxos e inchados de tanta pancada, Matador não resistiu e cantou: "O berro é transa do Tonhão".

    Tranquilo na alfaiataria, Tonhão pregava bolsos em camisas, agulha e linha dançando entre os dedos grossos, quando Leão surgiu à porta: "O negão aí quer ter a bondade de comparecer", disse o carcereiro-chefe, como se a voz brotasse de uma geleira. O preso pressentiu logo –"sujeira!" Leão falou com sarcasmo: "Tá sabendo que hoje demos uma batida por aí?".

    Tonhão revistou a própria cela em pensamento e conferiu que, lá, nada havia que não pudesse ser encontrado. "Tô sabendo, não", respondeu cabisbaixo. "Pois é, muamba da grossa". "Fumo?" "Que nada, malandro, coisa fina, niquelada, polida que nem prata e muita munição de banda."

    O prisioneiro sentiu um calafrio e intuiu logo: caiu o 38! O coração se acelerou. Foram direto para a sala de torturas. Logo que a porta foi fechada, Tonhão recebeu o primeiro chute à boca do estômago. A partir daí, seu corpo transformou-se num deserto muito árido, queimado pelo sol, atravessado por esteiras dentadas de tratores, a carne retalhada em postas disputada por urubus.

    Ao receber um balde d'água no rosto, recobrou os sentidos, fez que não aguentava mais e disse: "Foi o Leão. Foi ele quem me trouxe a máquina".

    Os guardas olharam para o carcereiro-chefe, que bufava de ódio, a baba espumosa derramando pela boca: "Este nego vai contar tudo e, depois, a gente põe nele um paletó de madeira".

    As sevícias prosseguiram, e Tonhão, não tendo mais por onde sentir dor, manteve firme a versão: "Leão transa fumo comigo há anos, e foi lá em casa apanhar o berro com a minha mulher. Ia levar uma nota preta na tramoia, mas o cagão do Matador dormiu de touca".

    Afinal, como o preso moído de pau sustentasse a mesma história, o diretor decidiu apurá-la. O oficial de Justiça bateu à porta do barraco. Ifigênia atendeu. "Tonhão tinha uma arma guardada com a senhora?" Com a tristeza estampada na face, ela disse que nem sabia onde o revólver andava escondido, foi numa visita que ele apontou o lugar, que era para eu entregar a um homem que viria buscar e, dias depois, apareceu um senhor forte, brancão, cabelos de fogo, dizendo que tinha vindo apanhar a encomenda do Antônio, e eu entreguei pra ele a arma. "E como era o nome do homem?" "Não sei, não. Não guardei, não, senhor."

    O oficial abriu a pasta e começou a exibir uma coleção de fotos: "Foi este aqui?". "Não, senhor." "E este?" "Também não."

    Após 18 fichas com os retratos dos carcereiros, foi exibida a foto de Leão. "E este?" Ifigênia pegou o papel, olhou bem e devolveu-o. "Foi, sim. Tá mais novo no retrato, mas foi ele."

    O diretor não queria acreditar. "Logo o Leão! Deve estar batendo o pino de tanto dar porrada em bandido." Decidiu mandar buscar Ifigênia, pois a ordem do juiz corregedor era tirar tudo a limpo.

    A moça, ao entrar no salão nobre, viu sobre o palco a fila de todos os funcionários da penitenciária. Nervosa, mordia o lábio inferior e suava muito na palma das mãos. "Agora a senhora vai fazer o favor de apontar o homem que apanhou a arma em sua casa", disse o diretor. A mulher encarou um por um dos homens, andando com passo miúdo e, de repente, viu-se à frente de Leão. Não titubeou: "Foi este aqui, doutor".

    O que se passou, então, não foi testemunhado pelos prisioneiros mas, à boca pequena, corre, ainda hoje, que Leão entrou no cacete para confessar suas transas na penitenciária. O certo é que foi demitido "a bem do serviço público", para a alegria geral dos presos que, eufóricos, se sentiram vingados do que haviam sofrido nas mãos do carrasco.

    Após um ano de castigo na cela forte, por tentativa de fuga e porte ilegal de arma, numa tarde Tonhão entrou na alfaiataria e indagou com um sorriso cúmplice: "Ainda aqui, mestre João?". "Ainda, negão, mas se Deus quiser me aposento no final do ano", respondeu calmamente o velho, erguendo os olhos acima das lentes brancas que pendiam sobre o nariz.

    FREI BETTO, 72, religioso dominicano, é escritor. Autor de "Batismo de Sangue" (Rocco).

    SÔNIA GOMES, 68, é artista plástica.

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