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    Moisés repassa teoria literária com rigor e graça

    MANUEL DA COSTA PINTO

    12/02/2017 02h00

    O mínimo que se pode dizer do novo livro de Leyla Perrone-Moisés é que seus ensaios mostram como a capacidade de se transformar garantiu a permanência dessa "estranha instituição chamada literatura" –na expressão de Derrida citada pela autora. Dividido em duas partes, "Mutações da Literatura no Século 21" recenseia diferentes concepções da "estranha instituição" para então analisar algumas vertentes temáticas da produção contemporânea.

    Há uma astúcia embutida nessa estrutura. Pois se, na primeira parte, Leyla examina noções recorrentes na teoria literária das últimas décadas, na segunda, ela identifica tendências que comprovam seu próprio ponto de vista. A saber, que não existe literatura sem diálogo ou litígio com a tradição –ou que, como ela mesma escreveu anteriormente, "a literatura nasce da literatura".

    Ivan Padovani

    Ao examinar tópicas (ou mitos) como o "fim da literatura" ou a noção de pós-moderno, Leyla faz uma notável e serena síntese das maneiras de conceber esse objeto tão fluido, desde as histórias positivistas centradas na biografia e no contexto do autor até a busca estruturalista de uma "essência literária universal". Essa "literariedade" teria garantido o caráter "autotélico" do artefato verbal, separando-o do sentido utilitário (e burguês) da linguagem ordinária –tendo por efeito colateral fazer com que a literatura perdesse "seu poder comunicativo e seu prestígio social".

    Não falta humor nesse passeio erudito por vertentes da teoria literária. Ao dissecar características da ficção pós-moderna (ironia, intertextualidade, paródia, metalinguagem, ludismo), ela lembra a observação de Umberto Eco, segundo a qual, por esse critério, Stern e Rabelais seriam pós-modernos. E, depois de esmiuçar o caráter confiante, triunfalista, que permeou a era heroica da teoria literária, termina por fazer uma ironia das ironias e a citação de uma citação: "A seriedade com que consideramos a literatura nos dá um aperto no coração" (paráfrase, por Pierre Michon, de um comentário de Pasolini sobre Gombrowicz).

    Michon, aliás, está entre os autores analisados em dois ensaios complementares: "Os Escritores como Personagens de Ficção" e "Espectros da Modernidade Literária". No primeiro, Leyla analisa o modo como escritores atuais transformaram nomes canônicos em protagonistas, como nos romances de Tsípkin e Coetzee sobre Dostoiévski ou no livro "Rimbaud, o Filho", do francês.

    Mutações Da Literatura - Século XXI
    Leyla Perrone-Moisés
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    No segundo, desdobra a "espectrologia" de Derrida (a questão da herança e da dívida com o passado) para ver, nos encontros dos autores contemporâneos com os assombrosos vestígios da tradição, uma resposta da literatura à nossa época saturada por imagens espectrais.

    Uma resposta que reitera a necessidade humana de narrar, repondo sequências lineares de causas e efeitos num momento de fragmentação virtual –e que, numa das tantas iluminações dispersas no livro, faz com que a literatura atual apresente "mais mutações temáticas do que mudanças formais", ou seja, continue plasmando uma essência inessencial para responder a suas sentenças de morte.

    MANUEL DA COSTA PINTO, 50, mestre em teoria literária e literatura comparada, é colunista da Folha.

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