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    A deturpação da crítica de Arthur de Gobineau à miscigenação

    CARLOS ALBERTO DÓRIA

    26/02/2017 02h00 - Atualizado às 15h13
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    RESUMO Autor se debruça sobre texto de meados do século 19 em que diplomata e aristocrata francês trata da diluição (e eventual morte) das culturas pela miscigenação ("anarquia étnica", em suas palavras). Ensaio que esboçava uma filosofia da história foi progressivamente instrumentalizado por ideólogos do racismo.

    Derlon

    Dois anos antes da abolição da escravatura nos EUA (1865), fundou-se em Londres a Sociedade Antropológica, com o intuito de apoiar os racistas do sul americano. Uma de suas ações foi a tradução da obra de Arthur de Gobineau (1816-82), "Essai sur l'Inégalité des Races Humaines" (ensaio sobre a desigualdade das raças humanas), com o sugestivo e falso título de "Moral and Intellectual Diversity of Races" (diversidade moral e intelectual das raças).

    Desde a abolição, o racismo instalou-se como um câncer a corroer a democracia, especialmente na América profunda, conforme retratado nos romances de Erskine Caldwell (1903-87) dos anos 1940. A eleição de Obama parecia anunciar a remissão da enfermidade, mas eis que o racismo ressurge, copioso, na boca de seu sucessor, evidenciando que a democracia é uma correlação de forças sociais, não uma carta de princípios.

    Manifestações de intolerância e movimentos de Donald Trump para manter uma espécie de supremacia branca norte-americana colocam na ordem do dia uma nova discussão sobre o racismo e suas atualizações. Parece que o fantasma de Gobineau levanta do túmulo para assombrar o presente.

    Mas há nos EUA uma longa tradição de intolerância. Desde o século 18, em alguns Estados, como os da Nova Inglaterra (enclave na região nordeste do país), as cidades tinham conselhos dotados da prerrogativa de determinar a expulsão de estrangeiros ou forasteiros indesejados –como mães solteiras, prostitutas, bêbados ou chineses–, que pareciam viver ali sob liberdade condicional.

    Bravatas de Trump contra mexicanos, portanto, não são disparates da última hora.

    No caso do novo mandatário, a intolerância constitui, antes de mais nada, uma tradição pessoal. O histórico racista de Trump foi analisado pelo jornalista Nicholas Kristof, do "New York Times". O republicano foi processado por se recusar a alugar apartamentos para negros. Também retuitou mensagens de simpatizantes nazistas.

    Mas o que Kristof conclui é que há uma contradição nos discursos do presidente, pois "muçulmanos e hispânicos podem ser de qualquer raça –então algumas dessas declarações tecnicamente refletem mais intolerância do que racismo".

    Parece firula de linguagem, mas é fato que o delito de opinião não pode ser tomado como o racismo por inteiro, que é um sistema de pensamento que o justifica para os que o praticam. Sem doutrina, o "civilizado" se bestializa, iguala-se a sua vítima, nivelando-se a quem considera sem alma.

    A doutrina dá à violência o sentido de missão; define os "bad hombres" (sic). No mundo cristão, criou hierarquias baseadas na crença de que parte da humanidade era desprovida de alma. Foi o cimento ideológico do colonialismo e do imperialismo.

    Como o capitalismo recria incessantemente a desigualdade, ele repõe premissas do racismo. E entende-se por que, após estudar a "inégalité" das raças, Gobineau, redescoberto meio século depois de ter escrito um livro inexpressivo, foi usado como doutrina, embora seu propósito fosse estudar a humanidade viva iluminada pela humanidade morta.

    Mas não se pode ler raça no século 19 como lemos hoje, com enfoque apenas físico. Havia naturalistas que contavam até 63 raças humanas. Talvez por isso o "Essai" de 1853 de Gobineau (escritor eclético dedicado a defender a aristocracia francesa frente aos riscos de decadência prenunciados pela Revolução) nunca tenha sido a bíblia do racismo como, de modo desavisado, se crê.

    POLIGENIA

    O cerne do racismo do século 19 residiu na crença poligenista de que Deus havia criado cada raça humana como espécie separada, sendo negros e brancos tão distintos como "cavalos e jumentos". Mas Darwin escreveu "A Origem do Homem e a Seleção Sexual" (1871) como libelo contra a escravidão; ali, ele postulava a monogenia, isto é, a origem única da espécie Homo sapiens sapiens, e o fazia analisando as diferenças entre raças humanas.

    Para redigir o volume, ele estuda detidamente os argumentos de dezenas de poligenistas; a bibliografia não inclui Gobineau, e isso por causa da importância ínfima de suas ideias. Ao fim e ao cabo, Darwin mostrará que o homem é destas espécies polimórficas, nas quais as diferenças secundárias (cor da pele, cabelo etc) não incidem nos caracteres definidores da espécie ou em sua evolução.

    Ele dirá ainda que a simpatia entre grupos humanos diferentes é dos últimos desenvolvimentos morais da humanidade e ainda está em processo de consolidação, que se completará quando barreiras artificiais (políticas) entre esses núcleos forem derrubadas.

    O "Essai" de Gobineau fica em melhor moldura intelectual como obra do romantismo oitocentista –tão afeito ao estudo das culturas, especialmente o orientalismo– influenciada por um então imberbe cientificismo (que desembocará em Darwin). Sua preocupação era com as civilizações antigas (da Ásia central e do Sudeste Asiático) e com a europeia, todas tomadas a partir de uma perspectiva comparativa que explicasse as transformações e a decadência das primeiras.

    Raça, para ele, era uma entidade ao mesmo tempo física, cultural e histórica. Na fusão racial, fruto de instintos igualitários, diluem-se a aristocracia e sua vocação para servir de guia iluminado da história.
    É certo que Gobineau falou estupidez sobre os negros brasileiros (tachados por ele de boçais e preguiçosos), mas isso era apenas um detalhe do desprezo que devotou ao país como um todo quando foi embaixador da França no Rio.

    No "Essai", seu argumento capital é o de que não existem raças puras: elas desaparecem pelos sucessivos cruzamentos que acontecem quando do contato entre os povos. Ou seja, diluem-se as culturas anteriores naquelas que as sucedem. O texto atribuía à história humana a duração de 14 mil anos, divididos em duas fases: uma primeira, de esplendor e vigor intelectual, e a seguinte, de decrepitude.

    "A família ariana" –escreveu– "é o resto da família branca, tendo sido absolutamente pura apenas à época do nascimento de Cristo". Na modernidade, Gobineau achava que a noção de raça perdera sentido dada a "anarquia étnica".

    No final do século 19, quando o debate sobre raças se agudizou, a obra dele foi acatada pelos inimigos da miscigenação –vista pelo autor como a morte anunciada de qualquer cultura. Mas o que Gobineau tentava mesmo era construir uma filosofia da história, tão em voga no ambiente intelectual do século 19, conforme Kant ("Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita", 1784), Hegel (1770-1831), Herder (1744-1803) ou Marx (1818-83).

    De onde vem, então, a sua fama de pai do racismo, a acusação de ter sido um darwinista social "avant la lettre", formulada até por intelectuais brasileiros recentes?

    Certamente das ocasiões em que seu pensamento transbordou os limites da cultura diletante em que se movia para ser convocado pelo racismo militante. Esse desvio de rota foi urdido pelo inglês Houston Chamberlain (1855-1927), germanista e artífice da cultura nazista, especialmente do mito da raça.

    RAÇA ARIANA

    Em "Os Fundamentos do Século 19" (1899), Chamberlain sustentou a ideia de que a raça superior ariana, descrita por Gobineau, era a matriz das classes superiores europeias. Mas foi além, afirmando que ela não desaparecera, podendo ser encontrada em estado puro tanto na Alemanha como no norte da Europa (os celtas e nórdicos pertenceriam à mesma matriz germânica).

    A obra de Chamberlain se tornou a bíblia do pangermanismo no começo do século 20, vindo a exercer grande influência sobre a política antissemita do nazismo. Por obra dessa associação forçada, Gobineau virou, após a Segunda Guerra, nome impublicável entre os democratas. Mas suas proposições são reavaliadas em obras mais atuais, como "O Mito do Estado" (1946), do respeitado filósofo Ernst Cassirer, "Nós e os Outros" (1989), de Tzvetan Todorov, e "O Olhar Distanciado" (1983), de Claude Lévi-Strauss.

    Ora, a função do racismo é determinar, no plano simbólico e prático, quem deve vencer na competição, especialmente econômica, a partir de critérios suficientes para inferiorizar o outro. Vale tanto para o esbulho de terras indígenas quanto para preencher um emprego qualquer, disputado por diferentes.

    O que Trump prometeu, ao conquistar o comando, foi trazer os empregos de volta aos EUA, o que significa retomá-los a qualquer custo e de qualquer um –interna ou externamente, já que em boa medida foram as transnacionais norte-americanas que os espalharam pelo mundo.

    O "capitalismo num só país" parece ser o projeto de Trump subjacente ao seu racismo loquaz. Suas atitudes, no controle de fronteiras e na meta de recuperação dos empregos, aliadas à declaração intempestiva de que os norte-americanos estão fartos de perder guerras, ou à ameaça de invadir o México, configuram uma retórica que prenuncia um redesenho do imperialismo e, portanto, do discurso racista, indo além da intolerância.

    Certamente, trata-se de uma ameaça maior para o mundo do que jamais foi o pensamento aristocrático de Gobineau. Este pretendia descrever um processo histórico acabado, em que Estado e nação não se imiscuíam no debate racial. Já Trump dá sinais de que não hesitará em se servir do Estado para construir um novo país e, no ínterim, redefinir a noção de raça.

    Nenhum dos teóricos racistas do século 19 defendeu, como o faz Trump, o uso da tortura enquanto método de governo das gentes. O que ele propõe não é apenas hierarquizar os homens "inimigos", mas destituí-los de humanidade, se não nasceram norte-americanos brancos.

    CARLOS ALBERTO DÓRIA, 66, é doutor em sociologia pela Unicamp, tendo se dedicado ao estudo do evolucionismo e da recepção do darwinismo no Brasil

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