• Ilustríssima

    Monday, 29-Apr-2024 10:09:28 -03

    A ciência diante do sobrenatural

    MARCELO GLEISER

    26/02/2017 02h00

    RESUMO Ainda que a ciência busque oferecer chaves de leitura totalizantes para a realidade, o fato é que estamos cercados por mistérios. Há quem considere uma derrota da razão essa incapacidade de decifrar os enigmas que cadenciam a experiência humana. O texto insta o leitor a se deixar surpreender pelo insondável.

    *

    Imagino que muitos leitores tenham tido uma ou mais daquelas experiências estranhas, que parecem desafiar qualquer explicação racional. Vemos algo estranho ou testemunhamos eventos que parecem violar as leis da natureza, às vezes até evocando o sobrenatural; ou experimentamos emoções extremas, uma conexão com algo maior do que nós, misterioso, uma transcendência momentânea em que vislumbramos algo além de nossa existência, algo que merece ser atribuído ao divino. O que são esses eventos e experiências? O que estão tentando nos dizer?

    Um racionalista reage a esse tipo de situação com um certo desdém, desmentindo-a imediatamente como uma coincidência sem qualquer significado mais profundo. Em geral, o cético cita a lei dos grandes números: quando bilhões de pessoas passam por dezenas de bilhões de experiências diariamente, a probabilidade é razoável de que alguns sejam expostos a situações tão raras e bizarras que, ao menos na superfície, possam parecer inexplicáveis.

    A professora de antropologia da Universidade Stanford, na Califórnia, Tanya Luhrmann, que também contribui regularmente para o jornal "The New York Times", é o que podemos chamar de uma especialista na "experiência do sagrado", aquilo que o grande psicólogo e filósofo americano William James (1842-1910) considerava a essência da religiosidade humana. Luhrmann é autora de diversos livros sobre o assunto, com títulos como "When God Talks Back" (quando deus responde; Knopf).

    Divulgação
    O mentalista israelense Lior Suchard
    O mentalista israelense Lior Suchard

    Em um de seus textos para o "New York Times", Luhrmann narra um episódio ocorrido quando ela era ainda estudante de pós-graduação na Inglaterra, uma dessas experiências que desafiariam sua construção racional da realidade, que colocariam em questão a ideia de que seguimos leis físicas de causa e efeito bem definidas.

    Viajando num trem em direção ao norte da Inglaterra para entrevistar um grupo de pessoas que praticava uma forma de mágica que, segundo eles, era bastante poderosa, Luhrmann viveu uma experiência insólita.

    "Estava lendo um livro escrito por um homem que os membros do grupo consideram um 'adepto', alguém com conhecimento e domínio profundo dos ritos mágicos. Quando tentava entender como essa pessoa se imagina sendo veículo desses poderes especiais, comecei a sentir algo estranho pulsando nas minhas veias, uma espécie de poder que emanava do meu corpo. Senti isso de verdade, visceralmente, e não apenas na minha imaginação. Comecei a sentir calor. Estava completamente desperta, mais alerta do que sou em geral. Tive a sensação de estar intensamente viva. Essa sensação de poder ocupou meu corpo, viajando através dele como água fluindo num rio. Tive vontade de cantar. De repente, vi fumaça saindo da minha mochila, onde havia guardado o farol da minha bicicleta. Quando fui examiná-lo, percebi que uma das lâmpadas havia derretido, mesmo que estivesse apagada", escreveu.

    Segundo o relato de Luhrmann, "embora a experiência não tenha mudado minha concepção da realidade, saí do trem com respeito renovado pelas pessoas que acreditam nesse tipo de magia. Com frequência, pessoas têm experiências incríveis e as anotam numa lista de eventos que não podem explicar e que logo são esquecidos num canto da memória".

    No mesmo artigo, ela menciona Michael Shermer, autor de vários livros e editor da "Skeptical Magazine" (revista dos céticos), racionalista de renome, que também teve suas crenças abaladas por um desses episódios. Shermer é um conhecido meu, e posso atestar que ele defende sua racionalidade com unhas e dentes. Eis sua história, que relatou em coluna na revista "Scientific American".

    Algumas semanas antes do seu casamento com uma moça alemã, Michael recebeu vários dos pertences de sua noiva despachados pelo correio em caixas. Dentre eles, um rádio bem velho, quebrado, que havia pertencido ao avô de sua futura companheira, morto havia muitos anos. Esse avô foi muito importante para ela, a figura masculina de maior influência em sua vida.

    Apesar de muitas tentativas, Shermer não conseguiu consertar o rádio. O casal acabou deixando o aparelho de lado, esquecido numa gaveta no quarto. No dia do casamento, que foi na casa de Shermer, uma música começou a tocar no segundo andar da casa. Após investigar várias fontes possíveis, Shermer e sua noiva descobriram boquiabertos que a música vinha do rádio, como que devolvido ao mundo dos vivos.
    Michael e sua esposa deixaram a música tocar a noite inteira. No dia seguinte, tão misteriosamente como quando havia começado, o rádio parou de funcionar.

    EM CASA

    Eu também tive uma experiência dessas (mais de uma, na verdade), que conto em detalhes em meu livro mais recente, "A Simples Beleza do Inesperado" (Record). Eis um resumo.

    Quando tinha 17 anos, crescendo no Rio de Janeiro, meus pais adoravam receber amigos para jantar. Meu pai era dentista e tinha acabado de acolher em seu consultório um grupo grande de imigrantes portugueses, a maioria bem rica (e de direita), que havia fugido da Revolução dos Cravos em 1974.

    Numa dessas ocasiões, o convidado de honra foi o senhor João Rosas, ex-ministro das Finanças português. Meu pai, um anfitrião impecável, ofereceu uísque a ele. Após tomar um gole, o digno senhor olhou para meu pai com uma expressão perplexa. "Ó Izaac, isto aqui não é uísque; é chá." Meu pai foi correndo até o armário onde guardava as bebidas e confirmou, para sua surpresa, que todas as garrafas abertas com bebida cor de âmbar continham chá e não uísque, conhaque, rum etc.

    Furioso, foi até a cozinha atrás de Maria, nossa cozinheira, uma senhora negra de 50 e tantos anos. A gente sabia que Maria era mãe de santo, e das boas, daquelas que "recebem" espíritos durante rituais.

    Maria fez pouco caso das acusações do meu pai, confessando no ato. "Pois bem, dona Maria, amanhã de manhã, a senhora pode arrumar as malas e ir embora!", rugiu meu pai, eu do seu lado. "Eu vou, senhor, mas algo de muito ruim vai acontecer nesta casa." Meu pai deu um passo para trás e pôs a mão no bolso esquerdo, em que levava um dente de alho. Olhei para Maria, horrorizado. "Você, meu filho, não se preocupe, não. Você tem corpo fechado e nada te fará mal."

    Meu pai, um homem supersticioso, tomou suas precauções. Dobrou o número de dentes de alho que carregava no bolso, e encheu a casa com pés de arruda.

    Um mês se passou, e nada de estranho ocorreu. Contratamos outra cozinheira, e a família retomou sua rotina. Até que, um dia, quando eu estudava matemática, senti um calafrio e uma compulsão de ir até a sala de jantar. Lá, tínhamos uma longa mesa de jantar, flanqueada num dos extremos por um armário onde meus pais guardavam seus cálices de cristal da Boêmia, antiguidades belíssimas que haviam ganhado de meus avós.

    Eram três prateleiras de cristal, cada uma contendo em torno de dez ou 12 desses cálices preciosos. Na outra extremidade da mesa, tínhamos um daqueles carrinhos de bebidas de bronze, com garrafas de cristal sobre uma prateleira de vidro, cada uma com uma coleira de prata revelando seu conteúdo: licores coloridos, vinho do Porto, Cointreau etc.

    Estava em pé ao lado da mesa de jantar meio distraído quando algo me fez olhar para o armário das taças. De repente, a prateleira superior rachou ao meio, e os copos despencaram sobre a prateleira abaixo, que, por sua vez, caiu sobre a prateleira inferior, causando uma avalanche ensurdecedora de cristal estilhaçando-se em mil pedaços.

    Mal pisquei os olhos, ouvi outro barulho de vidro quebrando. Olhei na direção oposta da mesa, e a prateleira do carrinho também quebrou, levando com ela todas as garrafas de cristal. Parecia uma bomba explodindo. Fiquei olhando a cena, paralisado, não sei por quanto tempo. A cozinheira nova veio correndo, se benzeu e voltou correndo para a cozinha. Foi embora naquela noite, dizendo que a casa era mal-assombrada.
    Tremendo dos pés à cabeça, liguei para o consultório do meu pai. "É a maldição, pai. Ela quebrou tudo, bem na minha frente."

    Durante muito tempo, tentei explicar o que ocorreu. Um avião supersônico teria passado perto; um terremoto teria ocorrido; ou poderia ter sido alguma vibração na frequência ressonante do cristal; talvez eu estivesse em algum tipo de transe hipnótico e quebrara tudo. Mas nada fazia sentido. Um evento, tudo bem. Mas os dois, quase em sincronia perfeita? E envolvendo bebidas alcoólicas. Esse é um evento em minha vida que permanecerá inexplicável.

    REAÇÕES

    As pessoas reagem de modo diverso quando passam por situações estranhas como essa. Algumas estão convictas de que é evidência da ação de entidades sobrenaturais e adotam alguma religião (o evento pode provocar até uma conversão religiosa) ou prática mística. Outras, talvez temendo o que esse tipo de ocorrência represente dentro de sua visão de mundo, decidem que é apenas uma coincidência rara, de baixa probabilidade, sem grandes mistérios. Ou, talvez, esse tipo de história, embora bizarra, seja algo que ocorre de vez em quando na vida das pessoas, sem a necessidade de ser atribuída a alguma dimensão intangível da existência.

    No meu caso, permaneço agnóstico. Sendo um cientista, sei bem que a natureza tende a seguir regras precisas. Conhecemos algumas delas, que usamos para descrever um enorme número de fenômenos naturais, dos átomos às galáxias. Entretanto, sei também que estamos cercados pelo que não entendemos, por mistérios que permanecem inescrutáveis. O projeto cientifico é uma tentativa de elucidar alguns desses mistérios, o que a ciência faz com enorme sucesso.

    Porém, existirá sempre algo que nos escapa. Muitos veem isso como uma derrota da razão. Trata-se de um grande equívoco. Um pouco de inexplicável sempre estará presente em nossa descrição do mundo –é, aliás, muito bem-vindo. Ao examinarmos os muitos níveis da realidade, é preciso manter a mente aberta, deixando sempre espaço para nos surpreender com o inesperado. Se aprendemos mais a cada dia, também deveríamos aprender a ter humildade perante o tanto que não sabemos ou podemos saber.

    MARCELO GLEISER, 57, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024