RESUMO Instância máxima da Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal foi criado em 1891 e pouco mudou desde então. Se o número de ministros oscilou, o papel de guardião das leis do país se mantém. Autor lembra que a corte é acusada de judicializar a política há décadas e mostra como ela se abriu à pauta da sociedade civil.
Deborah Paiva | ||
O atual protagonismo do STF (Supremo Tribunal Federal) nos conflitos institucionais sem dúvida tem características particulares, mas foi precedido de outros períodos em que a mesma corte viu-se envolvida em episódios marcantes.
A despeito disso, como lembra o título do livro de Aliomar Baleeiro, ministro do STF nos anos da ditadura, o Supremo ainda é "esse desconhecido". Pouco se publicou sobre sua história, e seus antigos acórdãos continuam praticamente ignorados.
Será que cada uma das sete Constituições republicanas alterou tanto o STF a ponto de não haver linha de identidade entre os diferentes momentos da trajetória iniciada em 1891?
É verdade que houve mudanças formais. No começo, o plenário da corte era composto por 15 ministros, número que depois passou a 11, subiu para 16 e voltou a 11. O modo de escolha, porém, permaneceu o mesmo. Durante a constituinte de 1891, discutiu-se a forma de nomeação dos ministros: pelo presidente da República, via eleição no Congresso ou mediante acordo entre Executivo e Legislativo. Prevaleceu o regime que se mantém até hoje: indicação pelo presidente e confirmação pelo Senado. Abandonou-se, assim, o sistema que existira no Império. Durante a monarquia, chegavam à corte suprema apenas os juízes de carreira, designados por ordem de antiguidade.
Com a nova regra, alguns ministros foram pescados no meio acadêmico e se destacaram, como Pedro Lessa e João Mendes, professores da Faculdade de Direito de São Paulo, hoje da USP. Outros foram chamados após terem ocupado cargos no Poder Executivo, como Alberto Torres, ministro da Justiça de Prudente de Morais, Epitácio Pessoa, ministro da Justiça de Campos Sales, e Carlos Maximiliano, consultor-geral da República sob Getúlio Vargas, sem falar nos casos recentes que todos conhecem. Entre os nomeados devido a serviços prestados ao governo, houve juristas menores e juristas maiores, cujas decisões ainda vale a pena ler.
Mais importante do que discutir a composição do tribunal, contudo, é analisar seu papel no sistema político. Quanto a isso, desde que foi criado, sua função principal manteve-se a mesma: ser o guardião da Constituição. No Império, a corte mais elevada, o Supremo Tribunal de Justiça, julgava apenas "segundo a lei"; na República, transformado em Supremo Tribunal Federal, passou a "julgar a própria lei", segundo disse João Barbalho, primeiro comentador da Constituição de 1891.
POLÍTICA
Não surpreende, pois, que o STF sempre tenha se envolvido em muitas questões políticas.
Durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894), teve de fixar os limites do Poder Executivo no estado de sítio. Em 1912, interveio num conflito eleitoral da Bahia, quando um juiz federal mandara bombardear Salvador para que o prédio da Assembleia Legislativa fosse desocupado.
Nos anos seguintes, foi chamado a deliberar a respeito de conflitos sobre limites entre Estados da Federação e concedeu ordens para que se realizassem comícios eleitorais ou reuniões religiosas quando as polícias, por ordem dos governadores, tentavam impedir esse tipo de manifestação.
Durante a ditadura Vargas (1937-1945) e durante a ditadura militar (1964-1985), ficou silenciado, mas, a partir da Constituição de 1946, julgou desde a cassação do Partido Comunista Brasileiro até a aplicação da Lei de Segurança Nacional. Recentemente, examinou a validade da Lei de Anistia, de 1979, e os planos de reforma monetária, entre 1986 e 1994.
Em resumo, o Supremo sempre se envolveu em questões de inegável impacto ou efeito político. Dito de outra forma, sempre houve judicialização da política –ou, pelo menos, acusações de judicialização da política.
Não por acaso, os primeiros intérpretes da Constituição de 1891, Pedro Lessa, João Barbalho e Rui Barbosa, frisaram a distinção entre decisões com efeitos políticos e decisões eminentemente políticas.
As primeiras são inevitáveis quando se dá a um tribunal poder para verificar os atos produzidos pelos outros Poderes. As segundas são –ou deveriam ser– típicas dos poderes políticos, pois decorrem de um juízo de conveniência fundado em critérios discricionários, como a declaração de guerra ou a aceitação de um embaixador estrangeiro.
Os doutrinadores, já naquela época, aconselhavam aos juízes constitucionais certa moderação, exatamente porque seus atos seriam inapeláveis. Assim, dizia-se, deveria ser presumida a validade da lei, não sua invalidade.
Tal conselho ajudava os ministros do STF a conterem seus gestos no papel de guardas da Constituição, mas não tocava em outro problema: a capacidade da corte de orientar a aplicação do direito pelos outros tribunais.
Nos Estados Unidos, por exemplo, não há maiores dificuldades. Como o Judiciário americano funciona no sistema da "common law", os tribunais seguem a interpretação das cortes superiores como se fosse lei. É o que se chama precedente. Quando se quer saber o que diz a Constituição dos EUA, procura-se a série de decisões tomadas pela Suprema Corte sobre o assunto, não apenas o texto legislativo ou os livros de direito constitucional.
Esse processo funciona de outro modo no sistema brasileiro. Considera-se que os juízes e os tribunais sempre podem interpretar a lei (e a Constituição) no caso concreto.
Além disso, no sistema norte-americano, justamente porque a decisão vale como precedente, é importante que ela tenha uma argumentação clara –seus fundamentos poderão ser usados em casos semelhantes.
No Brasil, chega-se ao cúmulo de o STF decidir de forma unânime –ou seja, todos os ministros votam no mesmo sentido–, mas com 11 razões diferentes. Como tirar daí uma regra, um precedente, um fundamento a ser utilizado no futuro?
Um exemplo dessa falta de orientação está na "guerra de liminares": um juiz decide uma questão sozinho, antes de a defesa se manifestar e antes de haver produção de provas. No dia seguinte, sua decisão é revogada por um juiz superior. Num terceiro dia, um terceiro juiz desfaz a decisão do segundo.
Como pode?, pergunta-se o cidadão confuso. Será que os juízes têm critérios? Ou será que se sentem pressionados pelos meios de comunicação, pela opinião pública, talvez por um desejo de celebridade? Estão nossos tribunais e, acima deles, nosso Supremo Tribunal Federal, preocupados com isso?
Ora, o tempo da Justiça não é o tempo das redes sociais. Um saudoso processualista brasileiro, Botelho de Mesquita, dizia que certos juristas e juízes resolveram acelerar o processo judicial sacrificando o direito de defesa. Os tribunais não podem embarcar na velocidade do Twitter, mesmo que devam prestar justiça rapidamente. Não podem, com as decisões singulares e de urgência, criar fatos consumados em prejuízo do direito das partes. Isso vale para todos os magistrados, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal.
Claro que o STF de hoje atua numa sociedade mudada. O Brasil se tornou uma democracia de massas ao longo do século 20. O direito de votar, por exemplo, foi estendido às mulheres em 1932 e aos analfabetos em 1988. Também foram incluídos os interesses estruturados por partidos políticos, por sindicatos e pelas chamadas organizações da sociedade civil.
PARTICIPAÇÃO
Ao lado disso, abriram-se mais canais de participação. Se até meados da década de 1960 debates constitucionais se iniciavam no STF apenas a partir de casos individuais e por alegação das partes, uma emenda constitucional de 1965 permitiu que o procurador-geral da República questionasse diretamente perante o STF a constitucionalidade de uma lei.
Quando essa possibilidade foi franqueada a diversos outros atores, com a Constituição de 1988, revelaram-se inúmeras demandas antes reprimidas. Muitos conflitos que nem chegavam ao Congresso puderam ser expostos publicamente diante de nossa corte suprema.
A espécie de disputa que agora se apresenta em público, portanto, tem a ver com esses grupos que antes não conseguiam se fazer ouvir.
Em meio a essa onda democratizante também surgem conflitos que não se resolvem devido à falta de lideranças políticas adequadas. Disputas internas ao Legislativo são levadas para o outro lado da praça dos Três Poderes num sinal evidente da baixa qualidade da representação política do Parlamento brasileiro.
Assim como mais gente entrou para a vida democrática e pública, mais gente se interessa pelo Supremo –inclusive por sua composição. É inevitável que isso aconteça, uma vez que o tribunal arbitra conflitos políticos entre Poderes, entre Estados, entre Estado e cidadãos e entre grupos da sociedade civil.
Essa é, no fundo, a principal mudança por que passou o STF ao longo de sua história. Suas decisões sempre produziram impacto na vida política do país, mas, com a ampliação da cidadania, esse impacto ganhou novas formas e nova dimensão.
Se, antigamente, apenas alguns poucos tinham acesso ao Supremo, hoje o caminho que leva até ele foi alargado. Não é motivo para fechar suas portas, mas pode-se pensar que muito daquilo sobre o que o STF é chamado a decidir resulta do bloqueio de outros canais de participação política e de garantias de direitos. Atualmente, diante de um Congresso conservador, que procura limitar direitos de toda ordem, e de um Executivo dominado pelo discurso da ordem e da eficiência econômica, a batalha pelas liberdades, pelos direitos e pelas igualdades será travada no STF.
JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES, 64, professor titular no direito da USP, é autor de "História da Justiça e do Processo no Brasil do século XIX" (Juruá).
DEBORAH PAIVA, 66, é artista plástica. Expõe trabalhos na galeria Rabieh, em São Paulo, a partir de 8/3.