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    Prostitutas e García Márquez no set do filme catalão de Glauber Rocha

    CLAUDIO LEAL

    12/03/2017 02h01

    RESUMO Em 1969, o espanhol Augusto Martínez Torres foi convidado por Glauber Rocha para fazer o roteiro de um filme inspirado em "Macbeth". Acabou como assistente de direção (na prática, "babá" de atores indisciplinados) e responsável pelo diário de filmagem de "Cabeças Cortadas", longa menos conhecido do baiano.

    Divulgação
    Glauber Rocha em cena do documentário "Glauber o Filme, Labirinto do Brasil", de Silvio Tendler
    Glauber Rocha em cena do documentário "Glauber o Filme, Labirinto do Brasil", de Silvio Tendler

    Livre do calor inimigo das ruas de Madri, o crítico espanhol Augusto Martínez Torres abre um envelope branco e dele retira papéis que, décadas antes, andaram pela Catalunha na temporada de frio. No canto de um hotel próximo ao Jardim Botânico madrilenho, ele mostra as páginas anotadas de uma versão preliminar do roteiro de "Cabeças Cortadas", o filme rodado por Glauber Rocha (1939-81) na Espanha, em 1970.

    "Você sabe que uma das três cabeças cortadas era a minha?", pergunta Torres, numa prosa veloz, lembrando-se de uma cena de decapitação do que talvez seja o menos conhecido longa do líder do cinema novo.

    A conversa faz então uma manobra de gôndola até o Festival de Veneza de 1969 para apanhar um Glauber eufórico com os convites de produtores europeus fisgados pelo filme "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", que lhe valera o prêmio de melhor diretor (dividido com o tcheco Vojt?ch Jasný) em Cannes naquele ano.

    Alguns meses depois do êxito no balneário francês, o cineasta cimentava sua reputação artística no festival italiano –além do "Dragão", realizara até ali "Barravento", "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Terra em Transe". A essa altura, Torres e o também crítico Manuel Pérez Estremera já o viam como um mito do cinema. "Em 1968, seus filmes eram perfeitos para as revoltas estudantis então em curso", acredita ainda hoje o primeiro.

    A dupla de amigos foi fustigada pelo diretor a trabalhar no roteiro de "Cabeças", uma experiência então inédita para Torres, iniciado na crítica havia menos de cinco anos. Em meados de 1965, ele colaborara com a revista católica "Film Ideal", migrando logo depois para a esquerdista "Nuestro Cine", em que publicaria duas entrevistas com o brasileiro.

    Em Veneza, em 1967, o cineasta baiano o escalou como fotógrafo de um papo com Luis Buñuel (1900-83). Dois anos depois, veio a sondagem para colaborar no roteiro do que seria a produção filmada na Catalunha. Vampirizado pela figura de Glauber, Torres não hesitou. "A ideia era filmar 'Macbeth' e [implicitamente] fazer uma caricatura do ditador [Francisco] Franco. A censura não notou", afirma.

    A leitura pessoal de Shakespeare encena o exílio do ditador de Eldorado (país latino-americano imaginário), claramente aparentado com o Díaz de "Terra em Transe" (1967). Os delírios do ensandecido Díaz 2º, refugiado num castelo, são agravados pelo medo de índios, camponeses e familiares. Por fim, um guerrilheiro messiânico surge naquelas terras para assassinar o déspota.

    Passados alguns meses, desfez-se o combinado. O produtor Ricardo Muñoz Suay avisou Torres que o brasileiro escrevera sozinho o roteiro; só restavam as vagas de supervisor de script e assistente de direção. Sem pigarrear, anunciou um salário menor do que os gastos com as refeições. Ainda assim, o espanhol topou a missão. "Como eu não tinha nada melhor a fazer, fui a Barcelona e me ofereceram um trabalho de roteiro sem ser roteiro", conta o crítico.

    Além da assistência de direção, ficou a cargo de Torres a redação de um diário da filmagem, transformado no livro "Glauber Rocha y Cabezas Cortadas" (Anagrama, 1970). Mal editada e jamais traduzida para o português, a obra inclui ainda o roteiro e alguns textos críticos.

    CENSURA

    Datilografado na primeira versão do roteiro, o título "Macbeth 70" ajudou a engabelar a censura espanhola, que não só aprovou o projeto como veio a considerá-lo de "interesse especial", o que garantia a subvenção de 25% a 50% dos custos totais. O teor antiditatorial, entretanto, ficava nítido no texto e nas segundas intenções –em 1970, o antifranquista Buñuel obteve a mesma aprovação surpreendente para "Tristana", um indício de que a ditadura não era tão apalermada e parecia disposta a atrair grandes criadores.

    Olhar arisco adornado por cabelos lisos e brancos, Torres aponta as anotações de Glauber em tinta azul, na página 39: "Aqui, as torturas subirão ao máximo possível, e Díaz gozará do poder mais total sobre tudo e todos". A folhas tantas, à margem da fala de um campesino, rabisca um lembrete: "Transformar o sentido de Cristo na coisa mais atual". Na mesma página, uma seta puxa para cima: "Sentido revolucionário!!!".

    Claudio Leal/Folhapress
    Página do roteiro de Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha
    Página do roteiro de Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha

    Um orçamento de US$ 100 mil foi oferecido a Glauber pelo distribuidor Pere Fages, autor do convite para filmar na Espanha. "Cabeças Cortadas", concebido em período fronteiriço ao também glauberiano "O Leão de Sete Cabeças" (rodado na República do Congo), seria proibido pela ditadura brasileira em 1972; terminaria por entrar em cartaz em 1979, depois de o chefe da censura, Luis Carlos Molinari, avaliar que "o povão" não assimilaria o conteúdo hermético e simbólico da fita.

    Glauber pretendia realizar o filme em planos-sequência, "um plano por ação", segundo repetia aos colaboradores. Além de dinheiro, possuía prestígio para convidar grandes atores. O espanhol Francisco "Paco" Rabal (Díaz 2º) fora dirigido por Buñuel, Jacques Rivette, Michelangelo Antonioni e Claude Chabrol.

    De seu lado, o francês Pierre Clémenti (Pastor) também trabalhara com Buñuel e mais Luchino Visconti, Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini. Cobiçada pelo baiano, a atriz e cantora Sara Montiel não foi localizada e terminou substituída (como se isso fosse possível) por Marta May (Soledad). Mulher do diretor, a atriz Rosa Maria Penna integrou o elenco e ainda assumiu outras funções na filmagem.

    As censuras oficiais e morais atrapalharam o redator do diário. "Havia coisas que não podia dizer. Não pude contar que tivemos um problema de Paco Rabal com prostitutas", diz Torres. "Ele desaparecia nas filmagens. Era um incômodo, levava prostitutas. E Clémenti ficava muito drogado. Uma das missões que tínhamos, eu e Manuel Pérez Estremera, era tirá-lo da cama. Eu o pegava pelos dois pés e o colocava na banheira para que se aprumasse um pouco e pudesse trabalhar."

    As filmagens começaram em 28 de fevereiro de 1970, no bairro gótico de Barcelona, e se encerraram em 24 de março, no Cabo de Creus, ao norte do golfo de Rosas. Pouco antes da viagem, o diretor recebeu o diagnóstico de uma hérnia diafragmal, sendo obrigado a uma dieta nada espanhola. Sumiria o homem loquaz e engraçado. "O mito foi abaixo na filmagem. Ele deixou de ser uma pessoa simpática e com humor. No frio, mudou completamente. Tinha muita dor no estômago", recorda Torres.

    A gravação da sequência inicial (com Díaz 2º ao telefone), numa biblioteca de Barcelona, deu uma ideia do procedimento que seria adotado no set. "Todos os tipos de incidentes fortuitos, tanto de imagem como de som, são imediatamente incorporados", anotou o assistente no diário.

    Em 3 de março, chegando a San Pedro de Roda, Glauber enfrentou o hálito gelado do vento transmontano. Apanhava do frio catalão num monastério beneditino abandonado, erigido a partir do século 9º, cenário ideal para o castelo de Díaz 2º.

    Os mendigos solicitados para a figuração apareceram em trajes maneiros e coches bem-postos. Anunciaram-se como ciganos vindos de um povoado de Figueras, a terra natal do pintor Salvador Dalí. A exuberância dos figurantes levou o diretor a imaginar um filme sobre as relações de domínio econômico entre mendigos europeus e latino-americanos.

    Interrompida a brincadeira, ordenou que o grupo fosse levado de volta a Figueras. Até que houve um recuo: Glauber se encantou pelo cancioneiro gitano e resolveu incorporar os ciganos, como tais, às sequências.

    Os improvisos sucessivos irritavam a equipe. Torres acompanhou, pasmo, o corte da maioria dos diálogos, no que seria uma influência do método de Jean-Luc Godard. "Do roteiro que conservo, usado durante a filmagem, só se utilizaram alguns monólogos. Por exemplo, as conversas telefônicas do protagonista. A filmagem era pura improvisação", relembra.

    GABO

    O fotógrafo Luiz Carlos Barreto desembarcou no set em 12 de março. No dia 14, foi a vez do escritor Gabriel García Márquez, que chegou a Rosas para festejar o aniversário de 31 anos do diretor. As visitas reanimaram o baiano. "Pelo temperamento de Glauber, pode-se imaginar que ele fosse uma pessoa irascível no set. Não. Ele era cool, ria muito. Era uma coisa lúdica", descreve Barreto.

    Num almoço, García Márquez contou o enredo de um romance futuro, ambientado no universo dos ditadores latino-americanos e com toda a pinta do que viria a ser "O Outono do Patriarca" (1975). Empolgado, o escritor brecou assim que percebeu o risco de a narrativa ser copiada por um dos convivas. Barreto lembra os tapinhas de Gabo na própria boca: "Cala-te! Cala-te! Glauber vai fazer um filme assim".

    Claudio Leal/Folhapress
    O escritor e cineasta espanhol Augusto M. Torres
    O escritor e cineasta espanhol Augusto M. Torres

    O cineasta observava uma rotina rígida. Era dos primeiros a acordar; ao fim da jornada, trancava-se no quarto para só sair na manhã seguinte. Distante do estigma de homem caótico, esteve atento aos gastos da produção, como anotou Torres:

    "Trabalhou-se, contando somente a partir do momento em que Rocha disse onde a câmera devia estar situada para rodar o primeiro plano e até o momento em que se terminou de fazer o último, um total de 75 horas, ou seja, uma média de cinco horas por dia e de uma hora por plano. Empregaram-se 12 mil metros de negativo eastmancolor, positivando-se 8.500. Cifras que, sem dúvida, marcam todo um recorde de rapidez e economia".

    Como incidente, as divergências técnicas com o diretor de fotografia, Jaime Deu Casas, que se recusou a aceitar alguns ângulos propostos.

    Apesar do rigor na condução dos trabalhos, a aposta em cenas improvisadas deixava Glauber sem uma ideia clara do conjunto. Contente com os planos rodados, ele todavia não tinha dúvida do iminente fracasso comercial. Falava em abandonar o cinema, o que não passava de um sintoma de cansaço.

    "Em alguma medida, ['Cabeças'] é um 'Ivan, o Terrível' [de Eisenstein] latino-americano, tratado com um certo sentido de humor –ainda que não muito, porque não o tenho", descreveu certa noite Glauber a Torres.

    "Cabeças Cortadas" prenunciava aspectos do "irracionalismo liberador" da conferência "Eztetyca do Sonho", apresentada em 1971 por Glauber, sob influência de Jorge Luis Borges.

    O filme continua a ser um corpo estranho no cinema espanhol, em cuja história, segundo Torres, o vírus da política pouco se introjetou: "Não existe nada. Aqui há uma teoria, que não sei de onde veio, de que se fizeram muitos filmes sobre a Guerra Civil. São pouquíssimos. Na ditadura, eram todos oficiais".

    Em 7 de julho de 1970, o filme ganhou a primeira exibição, no Festival de San Sebastián. Em viagem ao Chile naquele momento, o diretor não compareceu. O elenco enfrentou sozinho a rudeza da plateia, que sorriu somente de uma frase de Díaz/Rabal, uma mescla de dois Williams, Shakespeare e Faulkner: "Esta é uma história sem pé nem cabeça, cheia de som e fúria, contada por um idiota e que nada significa".

    Em Madri, Torres murchou na poltrona ao longo de outra sessão, seguro do naufrágio comercial. Nos anos posteriores, o crítico manteve certo encanto pelo brasileiro. Em 1981, num pequeno ensaio crítico, revisou o antigo entusiasmo. Hoje, aponta "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", conhecido mundialmente como "Antonio das Mortes", como o melhor filme de Glauber.

    A experiência frustrante no set catalão serviu a Torres de iniciação à técnica de cinema. Torres dirigiu nove curtas -o primeiro, "Una Mujer en la Playa", no ano de "Cabeças Cortadas"- e um longa de ficção, além de um documentário. Também produziu o notável "Arrebato" (1979), de Iván Zulueta. Revisitiu a amizade com este no recente "La dècadence" (2016). Por fim, estreou no mundo editorial com "Glauber Rocha y Cabezas Cortadas"; desde então, lançou romances e mais de 20 obras sobre o cinema.

    Quase cinco décadas depois, "Cabeças Cortadas" segue como ponto obscuro na filmografia de Glauber. "O filme é muito bom. Aquele primeiro plano do Paco Rabal, a câmera chegando nele, é o melhor momento cinematográfico de Glauber. É extraordinário. Eu vi na moviola. Quando chegava naquele ponto, eu voltava pra ver de novo", diz Zelito Viana, um dos produtores da obra -os outros eram espanhóis.

    "Quando estreou, criou muitos desafetos, menos por sua radicalidade política do que pela extrema ousadia formal. Foi considerado filme menor –e praticamente esquecido. É, porém, uma obra-prima", avaliou o crítico Alcino Leite Neto, hoje editor da Três Estrelas, do Grupo Folha, em texto para a Folha em 2004.

    CRISE

    Montador dos dois longas realizados por Glauber em 1970, o diretor e crítico Eduardo Escorel afirma que "tanto 'O Leão de Sete Cabeças' quanto 'Cabeças Cortadas' são filmes feitos às pressas, frutos da necessidade urgente de ganhar dinheiro para atender a demandas familiares -uma motivação respeitável- e de doses consideráveis de onipotência".

    "A crise de Glauber está evidente pelo menos desde 'O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro', que a meu ver não pode ser comparado a 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' ou a 'Terra em Transe'", acrescenta o montador. O prêmio de direção em Cannes (pelo 'Dragão'), na visão de Escorel, "não apenas pareceu perturbar Glauber como confundiu críticos como Augusto M. Torres, que, pelo visto, continuam a atribuir qualidades ao filme que, a meu ver, ele não possui".

    Na finalização de "Cabeças Cortadas", descreve Escorel, houve o "grande baque" da notícia de que "O Leão" não fora selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cannes. "Ninguém, muito menos o próprio Glauber, esperava por isso -um diretor premiado num ano ter seu filme recusado no ano seguinte."

    No livro "Revolução do Cinema Novo" (1981), Glauber transcreve duas entrevistas em que assume uma defesa "preventiva" da cria, num movimento de vacinação contra os ataques. "'Cabeças Cortadas' é um filme contra as ditaduras, é o funeral das ditaduras, trato de um personagem que seria o encontro apocalíptico de Perón com Franco nas ruínas da civilização latino-americana", declarou ao jornal "Ganga Bruta" em janeiro de 1979.

    Os adjetivos usados pela censura no ato de liberação são rebatidos. "O filme vai ser o seguinte: os críticos caretas vão dizer que ele é hermético, subjetivo, simbólico e metafórico, porque eles são muito burros. [...] O pessoal entendido vai curtir o filme. Esse público careta de burocratas da cultura comigo não funciona."

    Antes disso, em 1975, numa conversa com a Filmcritica, da Itália, Glauber vinculara "Cabeças Cortadas" à "tradição surrealista espanhola", definindo-o: "Fiz um filme sobre o inconsciente cultural, com uma montagem racional. Na associação e na dialética dos enquadramentos se descobrem claramente as forças das oposições".

    Escorel evoca discussões diferentes. "Na minha experiência profissional, em geral e especificamente com Glauber Rocha, não há conversas sobre 'inconsciente' e 'racionalidade' durante a montagem. É o modo em que as imagens e sons foram filmadas e gravados que dita o rumo a seguir. No tempo do Glauber, antes do digital, a montagem lidava com matéria física –película, fita magnética, coladeira, fita durex e lápis dermatográfico", explica o também montador de "Terra em Transe".

    Augusto Torres e Glauber se reencontraram outras vezes em Madri, nos anos 1970. Cresceu no crítico a certeza de que o amigo se desviava de si mesmo, afetado pelo consumo de drogas e paranoico com uma suposta espionagem da CIA.

    Um voo direto para Havana, onde Glauber se instalou no fim de 1971, manteve a capital espanhola na rota do baiano. "Quando ele vinha, uma das minhas missões era lhe buscar drogas", lembra Torres. "Ficava um par de dias, sempre cercado de gente muito bêbada e muito drogada."

    O baiano certa vez elogiou uma droga de indígenas latino-americanos capaz de fazê-lo "decolar". Com a mão, imitou um jato entre nuvens.

    Tão ou mais alucinante era o cigarro rosa acendido por Sara Montiel, em Barcelona, num espetáculo visto pela equipe logo após a conclusão das filmagens de "Cabeças". Antes do tango "Fumando Espero", um espectador cortês subiu ao palco e pôs o cigarro na boca da diva.

    Glauber, frustrado por não ter podido dirigi-la entoando uma das canções extremadas de seu filme, extasiou-se com o esplendor da cafonice.

    CLAUDIO LEAL, 35, é jornalista.

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