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    A dança política de Lia Rodrigues

    IARA BIDERMAN

    12/03/2017 02h06

    RESUMO Considerada a grande referência da dança contemporânea brasileira no exterior, a coreógrafa Lia Rodrigues apresenta seu novo espetáculo em São Paulo. O texto narra sua trajetória profissional, desde a formação no Brasil até os palcos europeus, passando pela atuação artística e social no complexo da Maré, no Rio.

    Adriano Vizoni - 22.abr.2014/Folhapress
    A coreógrafa Lia Rodrigues durante ensaio do espetáculo "Pindorama"
    A coreógrafa Lia Rodrigues durante ensaio do espetáculo "Pindorama"

    Os corpos nus tingidos por pó de café, curcuma e farinha dos bailarinos da companhia Lia Rodrigues abriram a mostra de teatro e dança Projeto Brasil, em Dresden, na Alemanha, com a estreia de uma dança ritual e política.

    A obra, "Para que o Céu não Caia", que chega a São Paulo na sexta (17), na MITsp (Mostra Internacional de Teatro), é uma resposta contemporânea à antiga profecia ianomâmi sobre como se dará o fim do mundo.

    Na leitura da coreógrafa que empresta seu nome à companhia, o mito do desabamento do céu no final dos tempos, descrito num livro do xamã Davi Kopenawa, assume uma forma dupla: abarca tanto o futuro apocalíptico quanto a ameaça presente.

    A imagem passa longe do floreio retórico. Em 2004, a artista instalou seu grupo na favela da Maré, no Rio, e ensaia desde então, com um ou outro interstício, sob calor insuportável, rasantes de helicópteros, tiros e fogos de artifício. A estreia brasileira de sua obra anterior, "Pindorama", ocorreu simultaneamente à ocupação da Maré pelo Exército, em 2014.

    Com os dois espetáculos, o elenco e os alunos da escola de dança, criada no mesmo complexo em 2011, Lia Rodrigues circulou pela Europa, onde ficou até o começo deste mês de março.

    A companhia segurou o céu em cinco cidades alemãs, e fez uma turnê na França, incluindo apresentações no prestigioso Festival de Outono parisiense, do qual são "habitués" figurões das artes cênicas como Bob Wilson, Berliner Ensemble (teatro), William Forsythe e Lucinda Childs (dança).

    A coreógrafa também acompanhou seus pupilos em um intercâmbio na escola Manufacture, em Lausanne (Suíça), e deu aulas no Forum Dança, de Lisboa, e no centro coreográfico de Montpellier, na França. O périplo atesta: Lia é hoje a grande referência da dança contemporânea brasileira no exterior.

    Suas coreografias conectam a linguagem experimental das vanguardas com a base primordial da dança, o rito. Os bailarinos quase roçam com o público, mas este não é obrigado a participar, apenas se afasta ou se aproxima a seu gosto. Nas formas criadas em grupo ou em solo, há algo de escultural e ao mesmo tempo muito vivo e um pouco inquietante, talvez pela proximidade física entre artistas e espectadores.

    As temporadas europeias da bailarina nascida em São Paulo e moradora do Rio há 35 anos começaram em 1980, quando ela foi para a França e trabalhou com a coreógrafa Maguy Marin. Os tours significam mais do que fama internacional: a sobrevivência da companhia e de seus projetos está ligada aos laços de Lia Rodrigues com a dança do velho continente, que garantem parcerias e ajuda financeira.

    "No Brasil –e primeiramente Fora, Temer, você pode colocar isso, por favor, porque é a minha posição–, o momento está muito difícil para todos os artistas", diz ela, por videoconferência, desde Amsterdã. "No Rio, o último prefeito [Eduardo Paes, do PMDB] deu um calote nos projetos que tinham ganhado financiamento, e sei que em São Paulo a situação também está muito difícil. Sou privilegiada por conseguir parcerias no exterior, mas a situação é preocupante."

    O posicionamento político é tão definidor da obra da artista quanto a linguagem corporal de seu plantel de criadores-intérpretes. "As manifestações contra o impeachment de Dilma nas apresentações na Alemanha não eram simples ativismo, nem algo como 'primeiro oferecemos uma contemplação estética; quando acabar, a gente se dedica aos assuntos políticos'. Era algo que se harmonizava com a coreografia", diz Matthias Pees, curador do Projeto Brasil.

    Pees, também diretor artístico do Mousonturm, importante centro de produções independentes em Frankfurt, acompanha o trabalho de Lia Rodrigues há quase 20 anos. "Quando comecei a ver suas criações, achava que ela ainda estava muito influenciada pelas vanguardas europeias. Já era um nome estabelecido, mas ainda procurava uma forma de juntar essas referências à identidade brasileira. Encontrou um caminho muito claro e honesto para fazer essa aproximação."

    CONSTRUÇÃO

    Esse caminho é, para Lia, um processo constante, uma construção que nunca termina. "Trabalho profissionalmente desde os 17 anos, mas isso não quer dizer nada. Aos 60, ainda estou descobrindo coisas."

    Antes de iniciar a carreira profissional, ela estudou balé por 11 anos na escola de Nice Leite, onde obteve seu diploma de bailarina. Os métodos da instituição eram avançados para o "clássico" da época. "Além de trazer pessoas para darem aulas de dança moderna, dona Nice falava: 'Vocês é que vão coreografar'. Eu adorava inventar. Acho que isso acendeu a chama para ser bailarina-intérprete", afirma.

    A certeza veio depois. Ao mesmo tempo em que se iniciava no ofício de bailarina, começou a cursar história na USP. "Estava em dúvida. Queria a dança, mas também tinha vontade de ser antropóloga. Um pouco antes de me formar, larguei a faculdade. Era a época da ditadura. Tenho colegas de curso que entraram para a história do país, mas eu entrei para a dança mesmo."

    Era também um período de dança politizada e potente em São Paulo, galvanizada pela criação do Teatro de Dança Galpão, iniciativa de Marilena Ansaldi. No local aberto para experimentações, oficinas, ensaios e apresentações, Lia Rodrigues fez cursos e formou com algumas colegas o grupo Andança –"uma companhia de mulheres fortes, mais ativistas do que qualquer coisa", nas palavras de Cássia Navas, professora do Instituto de Artes da Unicamp e doutora em dança e semiótica.

    A coreógrafa saiu do Andança para trabalhar na Europa. Queria fazer uma audição para a companhia da alemã Pina Bausch (1940-2009). Antes, fez uma escala na França, onde, por indicação da bailarina Célia Gouvêa (com quem tinha feito aulas no Brasil), entrou em contato com Maguy Marin, que saiu da escola de Maurice Béjart, na Bélgica, para reinventar a dança francesa.

    "Lia é muito inteligente no modo como capta experiências e transforma em um projeto claro para expandir o seu trabalho", diz Gouvêa.

    A paulistana trabalhou com Marin na França por dois anos, entre 1980 e 1982, em um momento-chave da carreira da segunda, quando ela montava o icônico "May B".

    "O trabalho de Maguy foi um choque na época, com sua mistura de teatro e dança dotada de viés político. Influenciou uma geração inteira, e Lia Rodrigues estava no lugar certo na hora certa", diz Louis Logodin, que foi secretário-geral do Le Phare (Centro Coreográfico Nacional de Havre Normandia), na França, até o final de 2016, e agora é adido cultural do consulado francês em São Paulo.

    A brasileira participou da criação de "May B" e dançou alguns anos no espetáculo, que Marin reapresenta até hoje. "Tem uma história muito bonita: há quatro anos, a Maguy fez uma remontagem do 'May B' e me convidou para dançar. Eu já não trabalhava mais como bailarina, mas aceitei. Vim para a França, reaprendi toda a dança e me apresentei", conta Lia.

    A amizade de quase 40 anos entre as artistas rendeu mais um presente. Marin cedeu os direitos de "May B" para uma montagem pelos alunos da coreógrafa na Maré. "Ela fez isso para nos ajudar: posso vender esse trabalho e, com o dinheiro, sustentar a escola", diz Lia, que pretende estrear o espetáculo em 2018.

    A decisão de voltar ao Brasil e se estabelecer no Rio, em 1983, foi motivada mais por fatores pessoais do que artísticos. Ela conheceu o primeiro marido, um carioca, na França. Ele estava de volta ao Rio, e para lá foi o casal. Na cidade, nasceram os três filhos de Lia: Diana, 34, do primeiro casamento, Luís, 30, e Inês, 28, do segundo marido de Lia, o músico Zeca Assumpção.

    O nascimento da prole significou uma certa parada na carreira. Além dos cuidados necessários com as crianças, Lia ainda não conhecia muitas pessoas no Rio.

    "Amamentei por dois anos cada filho, aproveitei e aproveito muito a maternidade, foi uma coisa que me formou."

    Nos intervalos, Lia coreografou alguns espetáculos teatrais, com diretores como Bia Lessa e Sergio Mamberti. No fim dos 1980, com as crias praticamente desmamadas, montou o Atelier de Coreografia com o amigo João Saldanha, parceiro na concepção de "Catar". "Foi meu primeiro trabalho como coreógrafa. Eu era até ali intérprete-bailarina, não sabia se queria coreografar. O João me estimulou, e resolvi continuar", conta.

    FUNDAÇÃO

    O passo seguinte foi fundar sua própria companhia, em 1990. Na época, segundo Lia Rodrigues, não havia programas de apoio continuado à dança. Mas existiam as premiações, que serviam de paliativo, e a coreógrafa ganhou o Mambembe, do Ministério da Cultura, em 1994.

    "Esse prêmio não existe mais. Tudo aqui no Brasil é extinto. O atual governo também quer extinguir os artistas, as pessoas, tudo o que é diferente", queixa-se.

    A companhia sobrevivia assim: ganhava um prêmio, apresentava-se em alguns lugares. Depois vinham longos hiatos longe da cena –roteiro bem conhecido por quem dança há algum tempo no Brasil. Sem sede fixa, os bailarinos trabalhavam em lugares emprestados, como o porão do teatro Villa-Lobos, em Copacabana, então em condições insalubres ("era tudo podre"), lembra Lia Rodrigues.

    Independentemente das condições, a coreógrafa continuou enfileirando projetos. Em 1992, criou o festival Panorama, pioneira mostra de dança contemporânea e considerada uma das mais importantes do Brasil. Tudo começou com um convite da artista Lilian Zaremba para pensar em uma programação para algumas datas livres no teatro Sergio Porto. A bailarina propôs uma temporada de dança. "[Até hoje] Não me sinto curadora ou diretora, e sim uma criadora."

    Cássia Navas, no entanto, considera a trajetória de Lia Rodrigues em gestão e produção tão ou mais importante do que a de coreógrafa. "Ela teve e tem um papel muito importante no sentido de abrir e consolidar meios de produção e difusão da dança. Muito bem relacionada no exterior, é articuladora para outros artistas também. Possui uma visão de dança que extrapola a da criação em si", avalia a professora.

    Foi com essa visão empreendedora, segundo Cássia, que Lia Rodrigues capitaneou no Rio a Escola Livre de Dança da Maré, versão de uma das mais bem-sucedidas experiências em criação e difusão de dança: os Centros Coreográficos Nacionais da França.

    "Essas instituições, apoiadas pelo governo federal, levam a dança do centro para a periferia e da periferia ao centro. A entidade que Maguy Marin dirigiu em Lyon, por exemplo, foi erguida no subúrbio, em uma zona menos favorecida da cidade, e Marin é uma figura importante na carreira da coreógrafa brasileira", diz Louis Logodin.

    MARÉ

    A parceria de Lia com a Redes Maré, organização civil de moradores e ex-moradores do maior complexo de favelas do Rio, começou após a coreógrafa conhecer o projeto a convite da crítica de dança Silvia Soter, coordenadora do Eixo Cultura da Redes.

    Além de instalar a sede da companhia na favela, Lia ajudou a erguer o Centro de Artes e a Escola Livre de Dança, que atende 300 alunos. Dois deles estudam atualmente em Bruxelas, na escola da conceituada Anne Teresa de Keersmaeker.

    "O projeto na Maré vem de um desejo de inventar uma coisa que não existia ainda, de experimentar de que forma um projeto de arte contemporânea dialoga com um projeto social. Essa é a pergunta, e ela ainda não foi respondida", resume Lia Rodrigues.

    O curador alemão Pees considera o projeto social uma consequência da visão estética da coreógrafa. "Não é algo do tipo: 'Além de arte, vou fazer um trabalho social'. Nem foi uma estratégia [de promoção pessoal], porque ela já era muito respeitada na dança europeia. Foi algo natural para a pesquisa estética que fazia. Claro, também é uma ação social, mas sem abrir mão da qualidade artística do trabalho. É o que chamo 'best practice' [boas práticas]", afirma.

    A resposta ainda não encontrada por Lia sobre o diálogo da arte contemporânea com a realidade social vai se revelando a cada espetáculo.

    "É muito difícil aproximar mundos diferentes sem cair em armadilhas. Mas em trabalhos como 'Para que o Céu não Caia' e 'Pindorama', isso foi feito da maneira certa, sem cair no folclore, no exotismo", diz Pees.

    A potência do trabalho, segundo Navas, vem da mistura de matrizes das vanguardas europeias com a linguagem corporal dos brasileiros. O acabamento técnico rigoroso é a cereja do bolo. "Gente pelada no palco tem em todo lugar, mas o que ela coloca em ação tem frescor, é encantador para bailarinos e espectadores", conclui a professora.

    IARA BIDERMAN, 55, é jornalista.

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