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    Leia o poema inédito "A Dança" de Maria Cecilia Brandi

    MARIA CECILIA BRANDI
    ilustração ESTELA MIAZZI

    19/03/2017 02h01

    SOBRE O TEXTO Este poema faz parte do livro "A Esponja dos Ossos" (ainda sem editora), cuja realização teve apoio da bolsa de fomento à literatura do Ministério da Cultura.

    estela miazzi

    Se a festa começou às dez e meia

    e terminou por volta das quatro

    teve trezentos e trinta minutos

    e como foram setenta e dois convidados

    neste meu aniversário

    de trinta e oito anos

    tive menos de cinco minutos

    para conversar com cada um

    na verdade ainda menos

    pois poucos chegaram no início

    e saíram no fim

    e eu devo ter ido

    ao banheiro quatro vezes e

    gasto dois minutos por vez

    o que consumiu oito minutos meus

    sem falar com ninguém

    fui algumas vezes à cozinha

    para repor comes e bebes

    e nesse tempo também

    não falei com meus convidados

    só com J. que não via há três anos

    devo ter conversado

    por mais de dez minutos

    havia muita coisa para contar

    e tudo parecia ter que ser ali

    como se não morássemos a sete

    quilômetros de distância

    mas havia outras distâncias

    impedindo o encontro antes

    há algo de mágico nas festas

    um fogo reafirmado

    talvez seja pelas velas

    o tempo derretendo

    a conversa para ficar boa

    costuma demorar um pouco

    as palavras se soltam lentamente

    mesmo que o entorno acelere

    eram todos meus convidados

    mas não pude falar com cada um
    .

    Por isso a dança

    A vida pisando na cara do tempo

    o triunfo do coração

    o discurso vitorioso dos pés

    Os corpos que se dobram para contar

    qualquer coisa subjetiva

    e fácil de se entender

    no ritmo da canção

    A interação pública dos corpos

    O pacto delicado que ativa as relações

    e a ciência que nasce

    em pulsações e movimentos

    que têm neles mesmos seu fim

    O congelamento mental

    de alguns instantes

    em meio ao fluxo enérgico

    como se o corpo solto

    libertasse o olhar

    Menos dizer e mais sentir

    A expansão do sujeito

    feito bailarina do Degas:

    rodopia em bronze

    quente e não protela o gozo

    A dança engendra

    toda uma plástica:

    o prazer de dançar irradia

    ao seu redor

    o prazer de ver dançar

    A única âncora:

    o próprio corpo

    o mesmo corpo

    que produz as ondas

    antes das despedidas

    MARIA CECILIA BRANDI, 41, tradutora e poeta, é autora de "Atacama" (7Letras).

    ESTELA MIAZZI, 28, é ilustradora.

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