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    Em biografia, jornalista narra a escolha de ministros por Tancredo

    PLÍNIO FRAGA

    02/04/2017 02h04

    RESUMO Este trecho integra o capítulo 19 da biografia "Tancredo Neves, o Príncipe Civil", do jornalista Plínio Fraga, que a Objetiva lança neste mês. O livro cobre bastidores da política brasileira entre as décadas de 1950 e 1980. No fragmento, narram-se as discussões para a composição do ministério de Tancredo em 1985.

    Divulgação
    Da esq. para dir., o governador de Minas Gerais Tancredo Neves, o governador de São Paulo André Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e o deputado federal Ulysses Guimarães durante campanha eleitoral das Eleições Indiretas, em 1984
    Da esq. para dir., o governador de Minas Gerais Tancredo Neves, o governador de São Paulo André Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e o deputado federal Ulysses Guimarães durante campanha eleitoral das Eleições Indiretas, em 1984

    Tancredo Neves dedicou-se à finalização das negociações do ministério da Nova República a partir da segunda semana de fevereiro de 1985. Marinheiro velho, preferiu uma imagem poética para definir sua estratégia de ação. "Na composição do ministério, devemos deixar as ondas baterem umas nas outras para estudar a espuma."

    À sua volta, contudo, não havia placidez. A algazarra lembrava mais a montagem de um circo. Supõe-se que a escolha da equipe de um governo seja uma empreitada cívica solene, mas não é bem assim. Tancredo não exercia apenas o confortável papel de dono do circo. Fernando Henrique Cardoso produziu imagem mais precisa: "Tancredo era um jovem no trapézio. Pulava de lá para cá com muita habilidade. A divisão do poder era muito difícil".

    Após a vitória no colégio eleitoral, o presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, contou ter ouvido de Willy Brandt, mítico chanceler alemão: "Vocês conseguiram fazer uma campanha sem erros". Não imaginava o veterano parlamentar que mais difícil seria a montagem do governo. Representar e contentar base multipartidária tão diversa exigia contorcionismo. Tancredo e Ulysses concordavam que o presidente do PMDB deveria permanecer no Congresso. "Eu sou um piano de cauda. Não caibo no ministério", definiu-se Ulysses. Empenhou-se ao máximo para que três pianos afinados com ele se instalassem na Esplanada dos Ministérios: Pedro Simon, Renato Archer e Waldir Pires.

    A orquestra regida pelo presidente Figueiredo havia sido apelidada de "governo dos pratos". Os integrantes só eram ouvidos quando se chocavam. Tancredo estava prestes a assumir a regência deixando dúvidas se sua administração seria do violino ou do pandeiro. Ambos os instrumentos são mantidos pela mão esquerda e tocados pela direita, o que parecia óbvio até ali. A questão era se a esquerda forneceria seu couro para a mão espalmada da direita, como ocorre no pandeiro, ou se melodia maviosa poderia ser ouvida a partir do suporte da esquerda para a habilidade da direita.

    Ulysses Guimarães guardou 11 páginas de anotações do próprio punho de conversa que manteve com Tancredo sobre a composição do ministério. As folhas têm o timbre da Câmara dos Deputados. Estavam em seu arquivo pessoal e não tinham vindo à tona até aqui. Não estão datadas, foram armazenadas junto com uma margem picotada de jornal, no qual Ulysses fez mais anotações. O pedaço foi arrancado da página 31 da Folha de S.Paulo de 7 de fevereiro de 1985, quinta-feira. É a capa do caderno cultural, originalmente ilustrada com fotos de Rita Hayworth, Marilyn Monroe e Greta Garbo. O título principal afirma: "O fatídico destino das vampes". Não haveria descrição melhor para as anotações de Ulysses.

    Tancredo retornara da viagem internacional naquela quinta-feira. A manchete da primeira página da Folha informava: "Tancredo reage contra pressões na formação do futuro ministério". Em entrevista no dia anterior, em Buenos Aires, declarara: "Ao formar o ministério, não aceito ameaças, imposição ou veto a quem quer que seja".

    De Buenos Aires, Tancredo ligou para Ulysses Guimarães e para o governador de Minas Gerais, Hélio Garcia. Pediu a ambos que estivessem no aeroporto internacional do Rio de Janeiro quando desembarcasse às 20h50. De lá, sairiam para reunião reservada no apartamento da avenida Atlântica. Essa conversa ocorreu na noite do dia 7 de fevereiro. No dia seguinte, Ulysses se encontrou novamente com Tancredo em Brasília.

    As anotações de Ulysses sobre a conversa ministerial podem ser de um ou dos dois encontros. É provável que assim seja, embora não seja possível comprovar essa tese. Ulysses gostava de escrever enquanto conversava. A troca de ideias se estendeu até as duas da manhã no primeiro encontro no Rio. Foi complementada por quase três horas de tête-à-tête, no final da tarde do dia seguinte, em Brasília.

    Logo na primeira página, Ulysses escreveu: "Anunciar depois de 28 de fevereiro", numa referência clara à divulgação da equipe ministerial. Em seguida, traçou o plano para Câmara, Senado e lideranças do governo, colocando ao lado nomes de parlamentares. Provavelmente, discutia com Tancredo como seria a sustentação do governo no Congresso. Na lateral, destaca-se expressão contornada a caneta: "burrão", sem ligação evidente a nenhum dos citados. Ao final dos nomes de lideranças parlamentares, Ulysses escreveu: "Afastar de vez Marco Maciel". Era um dos articuladores da Frente Liberal e muito associado ao regime que se findava. Anotou ainda: "Conversei com todos os governadores – Richa". O governador José Richa havia concedido entrevistas críticas à formação do ministério.

    Iniciando um novo bloco, escreveu: "Governo = discrição. Só você e eu. Setor econômico = Fazenda, Planejamento, Banco Central = ministros da área econômica Tancredo Neves". Ficou claro que o presidente pedia reserva na conversa e que seria o responsável pelas escolhas dos postos essenciais do ministério. Ulysses, entretanto, não deixou passar em branco sua restrição: "Francisco Dornelles = continuísmo", anotou.

    Na página seguinte, rabiscou as discussões para o Ministério do Planejamento: "Serra – banco de reserva. João Sayad, 40 anos, Ph.D. em Yale. Paciente, educado, flexível, rigoroso no desenvolvimento, manteve 20 obras públicas no governo de São Paulo". Ficava claro que a disputa estava decidida. O escolhido seria Sayad. Serra, coordenador da Copag, havia sido descartado.

    O próximo tópico aberto foi a chefia da Casa Civil. O nome cotado era o de Affonso Camargo. Ulysses anotou que estava "ressentido", porque se achava descartado. Isolara-se em casa, dizendo que ajudaria como secretário-geral do partido. Na conversa, acertou-se que o senador paranaense iria para os Transportes.

    Antonio Carlos Magalhães, convidado por Tancredo para ser ministro das Comunicações, foi o tópico seguinte. "A revolução não faz ministros", anotou Ulysses. Em seguida, uma série de nomes que podem ser interpretados como apoiadores de ACM no cargo: "Armando Falcão = Geisel, José Sarney, Marco Maciel, Roberto Marinho". Pode-se interpretar a anotação seguinte de Ulysses como os nomes de peemedebistas que se indignariam com a escolha. "Severo Gomes, Cristina Tavares, Freitas Nobre. Vai escandalizar as esquerdas", escreveu Ulysses.

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    Em seguida, a lista de ministeriáveis prossegue com possíveis cargos: Pedro Simon (Agricultura, Justiça ou Educação), Carlos Sant'anna (Saúde), Waldir Pires, Fernando Lyra, Fernando Santana, Marcos Freire e Fernando Henrique Cardoso. Após o nome de FHC, Ulysses escreveu o nome do suplente do senador paulista, José Roberto de Magalhães Teixeira. À exceção de Fernando Henrique e de Fernando Santana, todos se tornaram ministros.

    PLÍNIO FRAGA, 49, jornalista, trabalhou na Folha, no "Jornal do Brasil" e no "Globo".

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