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    Conto inédito e inacabado de Dostoiévski fala de espírito caseiro

    FIÓDOR DOSTOIÉVSKI
    tradução PRISCILA MARQUES
    ilustração ALEXANDRE TELES

    02/04/2017 02h01

    SOBRE O TEXTO Este conto inacabado foi encontrado entre os papéis do escritor russo após sua morte. Ele será publicado pela primeira vez no Brasil na coletânea "Contos Reunidos", que a Editora 34 lança neste mês.

    Alexandre Teles

    – Quer dizer então, Astáfi Ivánovitch, que você, um homem tão corajoso, viu um domovoi? Que história é essa, irmão?

    – Bom, ver mesmo eu não vi, senhor –observou Astáfi Ivánovitch, colocando seu copo na mesa e enxugando o suor do rosto com um lenço.– O olho humano não é capaz de enxergá-lo, diferente do que dizem as velhas e os cocheiros vigaristas; mas que ouvi, ouvi. Andou pregando peças em mim, senhor.

    – Não faça graça com isso, Astáfi Ivánovitch; depois dessa, vou acabar acreditando em domovois.

    – Não estou fazendo graça, senhor –respondeu sorrindo Astáfi Ivánovitch–, aliás, o caso não teve nada de engraçado. Faz uns dez anos, talvez mais, senhor. Eu ainda era jovem. Me aconteceu de ficar doente, senhor. Na época, eu morava na fábrica, trabalhava como auxiliar do zelador. Fui levado para o hospital. Fiquei uns três meses lá, até que não aguentei mais. Quando comecei a melhorar um pouquinho, fingi que estava totalmente curado, enganei o médico e consegui sair. Enfiei-me na fábrica; mas ela tinha pegado fogo na minha ausência; encontrei apenas paredes pretas; o dono fora para Moscou passar um ano. Bom, não tinha onde ficar. Recebi uns trocados; vi que era o suficiente para três meses. Pensei: tenho meus braços para trabalhar. Tentarei costurar roupas para funcionários. Não foi uma boa ideia. Era o começo da primavera, fazia frio. O vento era tão forte... bom, sabe como é Petersburgo! Além do mais, não estava totalmente curado, mal conseguia me manter sobre as pernas. Pensei: vai que eu pego um resfriado, aí não vai ter jeito! Ainda bem que tinha pelo menos uma roupa quente e digna. Era uma ótima pele de cordeiro; ganhei de Emil Vilmovitch, irmão dos senhorios, quando estes haviam chegado de Sarátov. Enfim achei um apartamentinho em Kolomna. O zelador apontou para uma cabana de madeira, um quartinho, e disse que lá em cima havia um canto para alugar. Digo: eh, isso sim é um abrigo para os nossos, como se tivessem feito um buraco no bolso. Entrei: o apartamento tinha apenas um cômodo onde moravam os senhorios, marido e mulher, e suponho que uns cinco filhos, ou seja, era pequenino, pequenino. Me colocaram atrás de um tabique. Comecei a falar com o senhorio e percebi que ele, coisa estranha, não me compreendia. Fui falar com a esposa: a mulher também era muito simples e ingênua; parecia ter uns 35 anos. Alugou-me um canto, ou seja, todo o espaço atrás do tabique e de uma tarimba; tudo isso por dois rublos e meio. "Está ótimo", pensei, e me mudei.

    Passei todo o dia seguinte deitado na tarimba, completamente quebrado, cheguei até a delirar e ainda meio dormindo ouvi que estava acontecendo alguma coisa no quarto dos senhorios. Até aquele momento eu não tinha sido capaz de olhar direito para eles. Somente naquele dia fiquei sabendo, ainda não inteiramente acordado, que as crianças estavam doentes, que o zelador tinha vindo pedir o dinheiro do aluguel e que existia um tal de Klim Fiódorovitch, um benfeitor. Na manhã seguinte, saí sozinho para resolver umas coisas. Anton Fiódorovitch, o príncipe Kamardin, prometera me arrumar um trabalho. Então, senhor, estava caminhando pela Sennáia quando de repente vi um homem correndo, tentando me alcançar. Era um homem bem estranho: comprido, seco, esquisito e, apesar da chuva e do tempo frio, vestia apenas um fraque; falou comigo de forma tão desajeitada que eu não consegui compreender. Perguntei-lhe: "O que há, meu bom homem?". Olhei seu rosto e, ora!, vi algo familiar e recente. Tinha os olhos marejados, vermelhos, inchados, seu lábio inferior era grosso, pendurado, tinha uma aparência tão tola!... "Ah", lembrei, "é o dono da casa, não tinha reconhecido". Comecei a interrogá-lo, mas não conseguia compreender nada; entendi apenas que ele tinha ido à escola de medicina, que seus olhos estavam ardendo, que perdera o capote em plena luz do dia e que tinha sido enviado para entregar um papel para Klim Fiódorovitch. Enfim, vi que estava cambaleando, o pobre homem não conseguia caminhar; resolveu vir atrás de mim, pois havia me reconhecido. Eu o acompanhei; sua esposa respirou aliviada. Ele estava muito doente, abatido e não falava coisa com coisa, estava totalmente atrapalhado. Nós o deitamos debaixo do ícone. Ele continuou resmungando e gritando por Klim Fiódorovitch.

    Contos Reunidos
    Fiódor Dostoiévski
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    Depois, senhor, fiquei sabendo de toda a história deles pela senhoria. Naquela época, eles moravam na província de Oblómov. Parece que ele era algo como um copista, ela não soube me explicar direito. Soube apenas que trabalhou até 1814 e depois foi seguir sua vida. Era um homem capaz e honrado, embora tolo; e ela também, quando se olhava para ele, parecia tola; tinham um monte de filhos, mas ele não tinha sorte, por mais que se esforçasse. Então, senhor, ele começou a trabalhar num escritório. De lá desapareceram dois mil rublos. Alguém estava surrupiando, começaram a procurar o ladrão; ele foi dispensado. Disseram que não iriam admitir bandidagem naquele escritoriozinho. Então, senhor, ele perambulou, perambulou, até começar em outro escritório; depois, em menos de três semanas o dono do negócio foi levado ao juiz. Então fecharam o escritório. Foi para outro: expulsaram-no. "O senhor certamente trapaceou junto com o dono." Mas tinham raiva mesmo era do dono: ele encurralou a todos, afinal era muito rico. Andou de lá para cá, e acabou arrumando trabalho no campo, como administrador de um jovem herdeiro. Em um ano torraram metade do patrimônio. Disseram que não precisavam mais dele, já que ele deixou uma coisa daquelas acontecer. Então, o que o homem podia fazer? Arrumou outro trabalho, mas resolveram trocar a chefia, o inspetor antigo fora denunciado, mudaram todo o pessoal. Disseram: não, você é um homem suspeito, além do mais não tem lugar para você aqui. Vamos precisar fazer uns cortes, só...

    Nota da tradutora: Na cultura eslava, domovoi é um espírito doméstico, que vela pela casa e pela família, garante a fertilidade e a saúde das pessoas e dos animais.

    FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821-81) foi um escritor russo, autor de, entre outros, "Crime e Castigo".

    PRISCILA MARQUES, 35, é tradutora e doutora em literatura e cultura russa pela USP.

    ALEXANDRE TELES, 38, artista plástico, é autor de "Caligari!" (Veneta).

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