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    Arquivo Aberto: Miguel Falabella me mandou recado pela TV

    ALESSANDRA VERNEY

    09/04/2017 02h00

    Niterói, 2014

    Eu era uma criança tímida. Lá em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, comecei a cantar e tocar violão para estabelecer um canal de comunicação com as pessoas.

    Também amava cinema. Era o que me tirava da concha e rendia boas conversas.

    Incrivelmente, a tímida decidiu, aos 13 anos, que queria ser atriz. Do nada, comecei a ler tragédias gregas e Shakespeare. A maioria dos meus amigos não entendia a razão pela qual aquilo ""absolutamente distante da nossa realidade– me alimentava e me levava a querer fazer da arte a minha vida.

    Um dia, no início da minha adolescência, no final dos anos 1980, recebi um recado, dado para mim olho no olho. Era aquele cara que soltava mensagens ao final do programa "Video Show", na TV Globo. "Se você quer ser ator, não desista do seu sonho. Estude, corra atrás, acredite em você, arrisque." Sim, esse cara entendia a minha inquietação e se tornou um cúmplice secreto que não podava meu sonho: Miguel Falabella. 

    Anos mais tarde, comecei a faculdade de publicidade e propaganda e engrenei uma carreira de cantora local, até me mudar para Porto Alegre e, depois, para o Rio de Janeiro. Era a flecha na direção dos novos horizontes artísticos. 

    O sonho de ser atriz tinha ido para a gaveta, mas a cantora lutava com força total. Fiz um teste para o musical "Ô Abre Alas", fui aprovada e nunca mais parei de trabalhar no gênero –que se tornou minha especialidade e ainda trouxe a reboque a carreira de atriz. Ou seja, aquele velho sonho de infância acabou sendo realizado.

    Foi então que ele chegou. Em carne e osso e... bingo! ELE me convidou para fazer parte do elenco de seu primeiro musical autoral, "Império". Sim, ele, meu cúmplice secreto. Nas voltas do mundo, eu estava frente a frente com quem tanto me incentivou –sem saber– a seguir minha carreira. 

    Outros trabalhos e muitos papéis vieram em seguida. Digo que sou a Alessandra "antes e depois do Miguel". Tive o privilégio de contracenar, por exemplo, com a eterna Marília Pêra em "Alô, Dolly!". "Ah, Miguel, se não fosse você lá no Vídeo Show", eu pensava.

    Fomos para o palco juntos muitas vezes. Em uma delas, na comédia "O Que o Mordomo Viu", de Joe Orton, dirigida e protagonizada por Miguel, tive a minha visão.

    Caio Galucci/Divulgação
    Miguel Falabella e Alessandra Verney em "O Que o Mordomo Viu"
    Miguel Falabella e Alessandra Verney em "O Que o Mordomo Viu", no teatro Oscar Niemeyer em Niterói

    Estávamos prestes a estrear, depois de pouquíssimo tempo de ensaio no teatro. E tudo, absolutamente tudo estava dando errado.

    Na noite de estreia, todos do elenco estavam preocupados e ansiosos. Minha personagem, uma aspirante a secretária prestes a fazer uma entrevista de emprego com seu futuro patrão, era a primeira a entrar em cena.

    Quando pisei no palco, achei mesmo que iríamos viver uma noite de caos. Miguel fazia um psiquiatra, entrava em cena logo depois de mim e me recebia no seu consultório. Ele usava um terno claro, e o cenário era totalmente branco.

    Nesse momento, eu me virei para ele, que disse: "Seja bem-vinda, senhorita!" –a primeira frase do texto. Enquanto ele apertava a minha mão, em um cumprimento, olhei fundo em seus olhos azuis, mais cristalinos do que nunca.

    Toda a minha ansiedade foi embora e tive certeza de que tudo daria certo naquela noite, e deu. Assim que a peça terminou, estávamos comemorando a estreia, e corri até ele: "Miguel, quando você entrou em cena e apertou a minha mão, eu vi Deus. Tive certeza de que tudo iria dar certo".  Ele rebateu, na lata: "Não, meu amor. O que você viu foi autoridade cênica". Pausa. Explodimos juntos numa gargalhada e, hoje em dia, sempre antes de entrar em cena, a voz de trovão dele ecoa na minha mente: "Autoridade cênica!".

    Eu entro em cena sempre acompanhada por essa "lembrança divina". Posso não ter visto Deus naquela noite, mas não tenho dúvida de que um anjo chamado Miguel, naquele aperto de mão, afirmava: "Vai dar tudo certo, confie".

    Alessandra Verney, 42, é cantora e atriz. Está em cartaz no musical "Beatles num Céu de Diamantes"

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