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    Os intelectuais que o Estado Islâmico evoca para justificar atentados

    DIOGO BERCITO

    09/04/2017 02h00

    RESUMO Reportagem mostra quem são os intelectuais, tanto medievais quanto contemporâneos, que a organização terrorista Estado Islâmico evoca para justificar atentados. Como inexiste um equivalente ao Vaticano para os muçulmanos, as correntes principais dessa religião não conseguem desautorizar a leitura violenta.

    Quando os líderes da organização terrorista Estado Islâmico declararam seu califado na Síria e no Iraque, em junho de 2014, eles não ergueram suas tendas nas dunas de um deserto intelectual.

    Seu projeto de Estado foi inicialmente descrito como um delírio bárbaro desconectado da história islâmica, mas analistas têm desde então admitido as relações, ainda que contestadas, entre essa milícia e pensadores muçulmanos amplamente conhecidos –tanto medievais, como Ibn Taymiyyah (séculos 13 e 14), quanto contemporâneos, caso de Turki al-Binali.

    São nomes que aparecem em toda propaganda do Estado Islâmico, a organização radical que reivindicou o ataque de 22 de março diante do Parlamento britânico, com quatro mortos.

    Sua revista oficial em inglês, "Dabiq", é recheada de citações que de alguma maneira ressoam entre seu público.

    Ibn Taymiyyah é uma das celebridades. Esse pensador viveu durante a ocupação mongol do império islâmico e legislou sobre temas relacionados àquela época. Ainda hoje seus dizeres ilustram outdoors e para-choques no território controlado pela milícia terrorista.

    Sua opinião sobre punições violentas foi utilizada como justificativa para a queima de um piloto jordaniano em 2015, por exemplo.

    Reprodução
    Estado Islâmico divulga vídeo quem que piloto jordaniano é queimado vivo
    Estado Islâmico divulga vídeo em que piloto jordaniano é queimado vivo

    Outro intelectual evocado é Muhammad Ibn Abd al-Wahhab. O suspeito pelo atentado ao metrô de São Petersburgo, em 3 de abril, acessava uma página com dizeres desse teólogo do século 18, central na história da Arábia Saudita. Suspeita-se que o ataque, em que 14 pessoas foram mortas, esteja relacionado ao Estado Islâmico.

    As ideias desses pensadores se incluem entre os elementos que têm convencido jovens de todo o mundo a deixar suas casas e migrar para países em guerra. O caso mais próximo do Brasil é o do belga Brian de Mulder, filho de uma brasileira, morto em 2015.

    A adesão ao Estado Islâmico passa por fatores como dificuldade financeira e isolamento social, mas é catalisada por ideias. Em especial, a noção de que o modelo político do califado islâmico constitui solução moral e justa para as mazelas do mundo.

    O fetiche pelo califado, um modo de governo surgido no século 7º após a morte do profeta Maomé e baseado na liderança de um califa e na aplicação das leis islâmicas, consta das histórias de diversos extremistas ouvidos pelo jornalista canadense Graeme Wood, que escreve para a revista norte-americana "The Atlantic".

    Wood publicou neste ano a obra "The Way of the Strangers", sobre os simpatizantes do Estado Islâmico –eles se chamam de "estranhos", por causa do dito segundo o qual os muçulmanos foram, à sua época, estranhos entre os pagãos de Meca e Medina. A Companhia das Letras editará o livro em português sob o título "A Guerra do Fim dos Tempos", com lançamento previsto para junho.

    IDEOLOGIA

    Wood diz à Folha que uma das inovações do Estado Islâmico em relação a outras organizações terroristas, como a Al Qaeda, é seu enfoque em uma campanha educativa. Sabe-se que militantes passam por estudos intensivos da lei islâmica assim que chegam à Síria e ao Iraque, por exemplo.

    Tamanha é a importância dada à ideologia que o clérigo Turki al-Binali, nascido no Bahrein, ocupa posição de liderança nessa milícia. Conhecido pela memória prodigiosa, ele é seu principal ideólogo e está no topo da hierarquia.

    Intelectuais da Al Qaeda, como o clérigo jordaniano Abu Muhammad al-Maqdisi, jamais alcançaram destaque semelhante.

    Ainda assim, apenas alguns círculos acadêmicos, como a Universidade Princeton, têm de fato estudado a ideologia do Estado Islâmico. A maioria prefere explicações políticas ou econômicas.

    Wood questiona essa abordagem dominante: "Quando analistas tentam imaginar as motivações dos militantes, eles projetam suas próprias formas de racionalidade nas mentes dessas pessoas. Dizem que ninguém poderia ser motivado pela religião dessa maneira e tentam humanizá-los. Mas isso leva a visões distorcidas".

    A convicção de Wood de que a religião tem papel central no Estado Islâmico suscitou controvérsia em 2015, quando o jornalista publicou reportagem insistindo que essa organização é, como sugere o nome, islâmica. Para os críticos, aquela era uma maneira de legitimar a organização terrorista.

    Não se trata de debate simples. Embora a imensa maioria dos muçulmanos discorde da interpretação feita por essa milícia radical, intelectuais têm dificuldade em sustentar que sua visão de mundo não está relacionada ao islã.

    O islã, ao contrário do cristianismo, não tem uma ortodoxia. Há centros influentes, como a mesquita de al-Azhar, no Cairo, mas não existe um equivalente ao Vaticano para os muçulmanos.

    Assim, a leitura do Estado Islâmico pode ser violenta e radical, além de extremamente minoritária, mas seus ideólogos se baseiam em textos canônicos e em pensadores consagrados.

    Ryan Mauro, analista de segurança nacional no Projeto Clarion, que mapeia a propaganda radical na internet, afirma que o Estado Islâmico tem tamanha ressonância entre radicais porque suas interpretações estão enraizadas em pensadores populares, como Ibn Taymiyyah e Abd al-Wahhab.

    "Se você olhar para qualquer edição [da 'Dabiq'], encontrará inúmeras referências a esses intelectuais para justificar as ações do Estado Islâmico", diz Mauro.

    AP - dez.2014
    Turki al-Binali prega para fiéis em uma mesquita de Mossul, no Iraque
    Turki al-Binali prega para fiéis em uma mesquita de Mossul, no Iraque

    ESCOLHA POLÍTICA

    Uma das principais referências no estudo do Estado Islâmico, Bernard Haykel, professor em Princeton, vai na mesma linha. "Eles justificam tudo o que fazem em termos religiosos", diz.

    "Essa ideologia ressoa o suficiente entre muçulmanos para gerar milhares de recrutas de todo o mundo, claramente influenciados pela ideia de um califado. O presidente dos Estados Unidos pode preferir dizer que isso não é islâmico, para não alienar os muçulmanos, mas essa é uma decisão política. Qualquer acadêmico reconhece que o Estado Islâmico é islâmico", afirma Haykel.

    Os militantes do Estado Islâmico, ademais, acreditam que sua interpretação violenta do islã é a única possível. Eles dizem que a religião foi deturpada pelos séculos de exegese. São chamados de fundamentalistas precisamente porque querem voltar ao que seriam os fundamentos do islã, surgido durante o século 7º.

    É nesse contexto que eles citam o pensador Ibn Hazm, nascido no século 10º na península Ibérica. Ibn Hazm sustentava que a religião deve se basear em suas manifestações evidentes. Ou seja, que os pilares do islã são seus textos originais –os quais precisam, por sua vez, ser abordados de modo literal.

    Essa perspectiva, de certa maneira, blinda o Estado Islâmico de críticas religiosas.

    Pensadores moderados acusam os radicais de não entender o islã ao promover a escravidão, por exemplo, uma prática abolida pelo consenso dos sábios muçulmanos.

    Clérigos como Binali, porém, podem responder que, como a escravidão era aceita segundo a interpretação corrente à época de Maomé, a deturpação está na visão do conselho dos sábios.

    Para o especialista Alberto Fernandez, essa argumentação se baseia em citações seletivas e descontextualizadas, e não em um estudo aprofundado. "São explicações superficiais de como eles entendem a realidade", diz.

    Fernandez, que chefiou de 2012 a 2015 o Centro para Comunicações Estratégicas de Contraterrorismo do Departamento de Estado dos EUA, completa: "Quando eles citam pessoas como Ibn Taymiyyah, tentam inserir sua agenda política e militar no contexto da história islâmica e convencer zelotes [falsos beatos], frequentemente jovens ingênuos, com um verniz de autenticidade".

    RENASCIMENTO

    O impasse entre a legitimidade das fontes e a interpretação é desafio imenso para as correntes principais do islã, que não compartilham do ideal violento do Estado Islâmico.

    Uma das vanguardas é representada pela organização islâmica Ennahda ("renascimento", em árabe), que chegou a governar a Tunísia após a Primavera Árabe (2011).

    "O Estado Islâmico está sequestrando o islã, os muçulmanos e mesmo a noção de califado", diz a deputada Mehrezia Labidi, uma de suas líderes. "O Estado não tem que ser religioso. O Estado é uma instituição feita pelo homem para governar os homens, e é perigoso dotá-lo de sacralidade."

    Ela afirma também que os valores do islã são a justiça, a família, a generosidade, a misericórdia. E questiona: "Como pessoas que demonstram tamanha selvageria, como os militantes do Estado Islâmico, podem ser muçulmanas?".

    Para Labidi, os militantes sequestraram personalidades como Ibn Taymiyyah, que são apresentadas a seus membros como modelos, mas descontextualizadas.

    "Ibn Taymiyyah foi bastante criticado em sua época. Referir-se a ele é uma maneira de manipular mentes", afirma. "Qualquer pessoa com uma cultura elementar pode desconstruir os slogans do Estado Islâmico."

    Um dos problemas talvez seja a expansão dos terroristas em regiões com educação deficitária.

    "Mas nós estamos pensando sobre o islã com racionalidade, reconciliando a religião à modernidade. Estamos produzindo uma contranarrativa como uma solução de longo prazo para o terrorismo", afirma Labidi, que, antes de atuar na política, integrava um grupo de teólogas tunisianas.

    "As mulheres sempre foram um objeto do pensamento religioso islâmico, mas precisam passar a ser sujeitos. Da mesma maneira, os muçulmanos precisam parar de ser um objeto", afirma.

    DIOGO BERCITO, 28, é correspondente da Folha em Madri; assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site do jornal

    *

    PILARES DOGMÁTICOS
    Doutrinadores religiosos evocados pelos terroristas

    IBN HAZM (séc. 10º)

    Nascido na península Ibérica, é autor de clássicos como o "Colar da Pomba", ensaio sobre o amor. Defendia a ideia, seguida pelo EI, de que a religião deve estar baseada em suas manifestações evidentes

    IBN TAYMIYYAH (sécs. 13 e 14)

    Clérigo que viveu durante a conquista mongol do império islâmico. Apontou respostas radicais a suas perguntas e pediu que muçulmanos lutassem pela aplicação da lei islâmica. Um de seus dizeres ilustrou o vídeo de um piloto jordaniano sendo queimado vivo, em 2015

    MUHAMMAD IBN ABD AL-WAHHAB (séc. 18)

    O religioso travou o acordo, ainda em vigor, que possibilitou a criação da Arábia Saudita, onde é seguido o wahabismo, interpretação radical do islã. A crença ganhou espaço com a descoberta do petróleo e a proeminência da Arábia Saudita no mundo muçulmano, financiando mesquitas e o treinamento de pensadores. Organizações terroristas devem seu extremismo a Abd al-Wahab

    NASIR AL-DIN AL-ALBANI (séc. 20)

    Clérigo albanês, defendia que o islã precisava retornar aos ensinamentos de seus ancestrais (salafismo). O jihadismo contemporâneo, como o da Al Qaeda e o do EI, é uma vertente radical do salafismo

    ABU MUHAMMAD AL-MAQDISI (séc. 20)

    O clérigo jordaniano foi mentor de Abu Musab al-Zarqawi, que criou organizações que deram origem ao EI, e tutor de Turki al-Binali, líder religioso atual da milícia. Após sua prisão e soltura por autoridades jordanianas, passou a criticar o EI

    TURKI AL-BINALI (1984)

    Nascido no Bahrein, é o ideólogo do EI e responsável por suas fátuas (editos religiosos). A interpretação do islã é traçada de volta ao século 7º, e as medidas são um prolongamento do que o profeta Maomé e seus seguidores pregaram

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