• Ilustríssima

    Friday, 19-Apr-2024 14:33:35 -03

    'Conceituação foi do Caetano, eu tive papel político', diz Gil sobre tropicália

    CLAUDIO LEAL
    RODRIGO SOMBRA
    foto RODRIGO SOMBRA

    09/04/2017 02h00

    Aos 74 anos, os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil refletem sobre cultura e política nos 50 anos do tropicalismo, o movimento que, em sua vertente musical, aglutinou Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duarte, Capinan, Júlio Medaglia e Rogério Duprat.

    "Tropicália ou Panis et Circensis", disco que reunia esses artistas, saiu em 1968. Já no ano anterior, contudo, Caetano e Gil haviam se destacado no Festival da Música da Record, com "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", respectivamente.

    Naquele mesmo 1967, a pulsação tropicalista se fizera sentir também no teatro (na montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina), no cinema ("Terra em Transe", de Glauber Rocha) e nas artes visuais (pelas mãos de Hélio Oiticica, com a obra "Tropicália", exposta no Rio de Janeiro em abril).

    Em entrevistas concedidas de forma independente à Folha, Caetano e Gil discutem o legado vanguardista do movimento, o avanço do conservadorismo no mundo e os equívocos da esquerda.

    Gil conversou com a reportagem em seu apartamento em Salvador. Pouco antes, participara de um show comemorativo dos 50 anos do tropicalismo, no Pelourinho.

    Rodrigo Sombra/Folhapress
    Gilberto Gil em sua casa em Salvador
    Gilberto Gil em sua casa, em Salvador

    *

    Você atribui a Caetano as formulações medulares do tropicalismo. Embora não seja vocacionado para o ensaísmo, você manifestou um ideário de música popular moderna, assumiu questões da negritude e do ambientalismo, embarcou em projetos políticos de Estado. Tudo isto implica em conceituações...

    Mas que são pós-tropicalistas. A rigor, são pós-tropicalistas.

    No caso da música moderna, não.

    Quando me refiro a uma predominância da ação do Caetano sobre todos nós outros na formulação da tropicália, eu me refiro àquele instante, àquele momento em que nos juntamos para fazer aquilo que deu na canção "Tropicália", que deu em "Miserere Nobis", "Panis et Circencis", nas canções todas daquele trabalho, nas migalhas sobre Copacabana.

    Pouco antes, você organizou algumas reuniões de músicos.

    Eu tive um papel político, digamos assim, talvez mais forte do que Caetano. Porque é da minha natureza. Estudei administração de empresas, entrei na política depois, fui fazer gestão pública. Eu gosto dessa coisa de gerenciamento de energias, de tendências, de disposições pessoais. Gosto de estar ali juntando pessoas pra fazer isso, pra fazer aquilo. Mesmo meu trabalho musical é caracterizado por isso. Minhas bandas foram formadas desse jeito.

    Mas o pensamento agudo, a conceituação tropicalista foi do Caetano. Não teria havido tropicalismo sem ele. Certamente não teria. Talvez não tivesse havido tropicalismo sem ele. Certamente não teria havido tropicalismo comigo. (risos) Eu não teria chegado àquela inspiração sobre a necessidade. Eu juntava os elementos aqui e ali. Eu vi a novidade da Banda de Pífanos de Caruaru, discutia com ele a novidade dos Beatles, dos Stones, de Bob Dylan.

    A gente se apaixonou ao mesmo tempo por toda aquela coisa da música pop do mundo. Descobrimos Os Mutantes juntos. Chamamos Tom Zé, Capinan, Rogério Duprat, Rogério Duarte e Torquato Neto para colaborar. Chamamos a Nara Leão. Nisso tudo, sem dúvida, eu tive um papel. Por causa dessa agilidade, do gosto de conversar, de sentar para conversar com um, com outro, para convencer.

    "No papo eu me safo", como você escreveu no "Pasquim".

    No papo eu me safo. Uma coisa que Caetano, pelo menos naquela época, ainda não era. Caetano veio a se tornar mais articulador depois. Ali naquele tempo, ele era um artista. Ele vinha da grande admiração pelo cinema, pela música, do ensaio crítico sobre o cinema, das inserções ligeiras sobre teatro. Ele era um artista mesmo já.

    E a coisa de buscar meios de realização do projeto artístico dele era uma coisa que foi chegando, foi surgindo com o tempo. No meu caso, foi o inverso. Eu era um realizador de coisas. Tinha sido programado para realizar coisas, para gerir, para organizar, para aglutinar, para liderar no sentido de grupos. E a veia artística, o gosto pela realização artística mais profunda, foi chegando com o tempo.

    Eu diria que foram movimentos até inversos. Ele foi chegando a se tornar mais profissional nesse sentido, e eu, que já era o mais profissional, fui chegando a ser mais artista.

    Quais eram as suas referências na poesia?

    Não existiam! Meus poetas até ali eram os poetas clássicos. Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias... Era o que os currículos escolares nos ofereciam.

    As modernidades todas só chegaram com Caetano. Foi ele quem me fez ler João Cabral de Melo Neto. Evidentemente, Vinicius [de Moraes] teve um papel enorme nisso. Aglutinava elementos de todo esse campo, com sonetos clássicos e canções populares, com versos livres etc. Tanto para Caetano quanto para mim, quanto para Chico [Buarque], quanto pra tanta gente, Vinicius foi um portal, um momento de abertura. Mas eu só fui me interessar por cinema moderno, por literatura moderna, por poesia moderna, por artes plásticas, por pintura moderna, todas essas coisas... A minha modernidade chegou com Caetano. Eu não tenho dúvida disso. Por isso que eu digo que, se ele não tivesse aparecido e meu cruzamento tivesse sido com outras pessoas, possivelmente eu não teria sido nada do que vim a ser.

    E Guilherme Araújo [produtor musical] na equação tropicalista? O designer Rogério Duarte dizia que ele comercializou a essência do tropicalismo. Como você vê?

    É uma justa acusação. (risos) Agora, se é uma acusação que merece condenação, não acho que Guilherme deva ser condenado por isso. Ao contrário, era natural que na era pop, dos fenômenos pop, da cultura de massa, a gente quisesse fazer um movimento musical popular que não tivesse capacidade extensional. O que Guilherme deu foi isso, foi a capacidade de estender o movimento aos seus limites mínimos de alcance, de públicos.

    Os Beatles tiveram Brian Epstein.

    Todos tiveram, todos eles. O fenômeno pop é isso: são os meninos criadores ali, nos seus porões, nas suas garagens, nos seus teatros, nos seus centros culturais, fazendo e criando coisas que vão alcançar o público. E só podem alcançar o público através desses meios providenciados por gente como Guilherme Araújo.

    O próprio Rogério era apoiador da massificação. O texto "Notas sobre o desenho industrial" trata disso.

    Sim! Pois é! Mas aí durma-se com um barulho desses! Como é que isso levava-o a uma condenação do trabalho do Guilherme? Nunca conversei propriamente com Rogério sobre isso. Quando ele estava próximo a nós, ele conversava sobre as coisas que importavam.

    Num outro plano da contracultura, nos anos 1970, você foi muito importante na defesa da descriminalização da maconha, depois da sua prisão em Florianópolis. Foi um confronto que prefigurou um debate que até hoje...

    Está sendo feito.

    No Rio, uma família já conseguiu autorização para o cultivo em casa, por razões médicas. Houve grandes avanços?

    Há uma adesão cada vez mais clara ao conceito da descriminalização, à transposição da criminalidade para o problema da saúde pública.

    Quando eu passei a usar maconha, principalmente, e ácido lisérgico – maconha eu nem considero droga, mas ácido lisérgico, sim, é uma coisa criada em laboratório –, fui vivendo um diálogo natural com essas manifestações, com os estados transformados de consciência, provocados por uma, provocados pela outra.

    As experiências de grande inspiração musical, de intensificação da inspiração musical que a maconha me proporcionava... eu fui entendendo a necessidade da defesa da benignidade dessas coisas, contra uma manifestação pró-malignidade, que dava suporte a toda a repressão, a toda a legislação restritiva, a toda a perseguição aos usuários. Eu fui percebendo, e não era só eu, era tanta gente no mundo inteiro que se encaminhava nessa mesma direção, fomos percebendo todos que era hora de dizer: isso aqui é mais benignidade do que malignidade.

    A malignidade dessas coisas está, exatamente, na visão restritiva, na visão criminalizante, na visão punitiva que se tem do uso. Essas coisas, no fundo, podem ser muito mais benéficas do que maléficas. E os malefícios eventuais podem ser cada vez mais tratados no campo da saúde pública, no campo da medicina. Isso tem avançado muito no mundo inteiro. A assistência aos drogados em países como Holanda, Itália, mesmo nos Estados Unidos, Alemanha etc., as liberações parciais em Portugal e em tantos lugares. Essa atitude, que inspirava uma percepção da benignidade, só se fortaleceu de lá para cá, em mim e em tanta gente.

    O governo Temer é acusado pela esquerda de operar um desmonte dos direitos sociais. Você percebe dessa forma?

    De uma certa forma, uma tentativa. Os ideários são conflitantes, são opostos.

    O ideário mais livre, mais íntegro da esquerda é o social. É a distribuição de renda, é a distribuição de oportunidades, é o socialismo, enfim. Os meios para chegar até ele, sejam os da primeira revolução de 1917, ou do leninismo depois, ou da social-democracia que herda a primeira Revolução Russa.

    Esse é o ideário que se contrapõe a esse outro ideário que é o dos que acreditam unicamente na capacidade de intervenção permanente do homem, na transformação da natureza, na criação de riquezas, sem a preocupação da distribuição delas. É a acumulação. É o ideário do outro lado, embora eles tenham que disfarçar com a questão da mínima distribuição de renda aqui, porque têm que dar emprego, têm que manter os trabalhadores, manter as domésticas fazendo o trabalho nas casas, precisam da mão de obra. Mas o grande ideário daquilo que se convenciona chamar direita é a acumulação. Acumulação para a distribuição aos donos do capital.

    No Brasil, isso tem sido brutal?

    Isso é brutal no mundo inteiro. Em alguns lugares, eles conseguiram atenuar. Países escandinavos, nórdicos, na Alemanha, nos Estados Unidos um pouco, na Europa em geral um pouco melhor, na América do Sul um desastre. Essa ainda é a grande disputa. Não importa chamar de direita, de esquerda, de socialismo ou de capitalismo. É isto: a disputa entre a distribuição mais generosa da riqueza produzida, de um lado, e a concentração mais concentrada da riqueza, por um outro lado.

    Em meados dos anos 80, o tropicalista Rogério Duarte dizia que a Bahia resistia como o último reduto do tropicalismo. Ele percebia a Bahia como lugar onde as formas sociais estariam dotadas de mais vitalidade, marcadas por uma vocação mais telúrica, capaz de fazer frente à integração modernizadora da sociedade de consumo. Você também chegou a pensar assim?

    Eu também acho. Ainda acho que a Bahia representa, no Brasil, uma das formas mais vibrantes dessa resistência. O jeito como as classes sociais, as raças, os credos religiosos interagem na Bahia ainda é promissor, ainda me dá esperança [começa a chorar]. Me comove muitíssimo. Eu não resisto às lágrimas quando vejo a Bahia...

    Você deseja ficar mais por aqui?

    Quero, quero. Flora também quer. A gente vai vir mais pra cá.

    Você sempre atentou para a dispersão da diáspora negra na música, incorporou o reggae, a soul music e outros ritmos de matriz africana. Como percebe a ascensão do hip hop na cultura brasileira?

    Acompanho de longe. Taí, é o último segmento ao qual não pude aderir! (risos) A minha agilidade intelectiva não chega até lá. Com a idade também, a questão da memória... memorizar aqueles longos discursos poéticos que os rappers fazem é impossível pra mim. As crianças aprendem num instante. Meus netos sabem essas músicas todas, conseguem decorar aquilo. Esse é o segmento pós-Gil. Meu único rap foi o "Rep" do disco "O Sol de Oslo" (1998). Um rapzinho modesto, não tão prolixo quanto o hip hop de hoje em dia, mas foi até onde eu pude ir. Agora não, agora quero ficar com as minhas canções, entrar para o hall dos cançonetistas.

    Você foi pioneiro na celebração da cultura digital na música e atuou diretamente para intensificar as suas possibilidades enquanto esteve à frente do Ministério da Cultura (MinC). Como avalia o sentimento distópico face às tecnologias da informação, hoje? Como percebe o momento em que as tecnologias servem a mecanismos de controle que remontam aos regimes totalitários, como a vigilância generalizada, as guerras com drones? Como vê esse encolhimento do horizonte utópico ligado às tecnologias digitais?

    Fora isso, a apropriação violenta que o mundo empresarial fez... o surgimento das grandes companhias que distribuem dados e acumulam capacidade de controle. E tendem a se associar a todo esse outro campo do controle mais policial do sistema.

    Há dez anos, a gente pensava ser possível um passeio libertário nos jardins da cibernética. O trabalho do MinC na articulação internacional com os movimentos do software livre, o Creative Commons, a convenção da diversidade cultural na Unesco, as iniciativas da comissão internacional de propriedade intelectual, em Genebra, e as grandes batalhas do direito autoral. E essa batalha atual, no sentido de que o espaço público seja reconhecido na internet.

    Uma série de empresas e instituições ligadas à exploração dos meios digitais querem negar aos autores a dimensão pública da internet. Como se a internet não fosse um espaço público, mas privado. Agora mesmo, tivemos uma vitória numa disputa entre a Oi e o Ecad. A Oi –com o suporte de Google, Rede Globo e de uma série de outros grandes interessados na questão intelectual–, de um lado, argumentando que o espaço da internet não é público; ou seja, que ali o direito autoral não pode prevalecer em benefício do autor. Do outro lado, estava o Ecad. Finalmente, o Superior Tribunal de Justiça deu ganho de causa ao Ecad.

    Estabeleceu-se, nesse primeiro momento, uma jurisprudência no sentido da admissão da internet –do Skype, do download, da reprodução de música na internet– como espaço público, uma coisa que as grandes corporações já estavam querendo abolir. Isso já estava no próprio cerne do ideário do MinC quando eu fui pra lá, e depois com Juca Ferreira também. Tivemos uma articulação internacional importante nesse sentido, que agora arrefece um pouco por causa dessa onda conservadora.

    O MinC chegou a ser desfeito e, depois, recriado.

    Chegou a ser desmontado, e alguns projetos como o dos Pontos de Cultura, importantes no sentido de empoderamento das comunidades, dos pequenos coletivos, tinham caído por terra. Espero que voltem. Enquanto noutros países como a Itália, alguma coisa nos EUA e o Japão, caminhou-se para adotar uma forma mais coletiva de ver a gestão pública desses meios, houve um retrocesso aqui. Lá, as coisas tentando caminhar um pouco mais rápido. Aqui, as coisas sendo travadas.

    O que vem no novo disco?

    Eu fiz várias canções. Tem uma nova pra Flora. Algumas já foram citadas na imprensa, como "Os Quatro Pedacinhos", música que eu fiz para a minha médica [a cardiologista Roberta Saretta, da equipe do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo]. A música que eu fiz com o Bem [Gil] para o meu neto, que chama-se "Sereno". Tem uma canção sobre o momento, a tal vil situação. Tem um verso que fala disso.

    O que você vem pensando nesses dias baianos?

    Eu canto "Cores Vivas". Toda vez que acordo, eu sento ali e canto: "O sol benfeitor dessa região". Esse verão foi tão generoso nesse sentido. Foi ensolarado, não choveu. Foi sol, sol, sol. Então, eu fico aqui pensando nisso, em "quantos verões verão nossos olhares fãs/fãs desses céus tão azuis."

    CLAUDIO LEAL, 35, é jornalista

    RODRIGO SOMBRA, 30 anos, jornalista e fotógrafo

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024