• Ilustríssima

    Friday, 03-May-2024 14:59:08 -03

    Diário de Varsóvia: Sereias vão ao museu, e xenofobia sobe ao palco

    IARA BIDERMAN

    30/04/2017 02h00

    Magda Hueckel/Divulgação
    Peça polonesa Klatwa de Oliver Frljic
    Peça "Klatwa", de Oliver Frljic

    A arte em Varsóvia busca e questiona a "identidade polonesa", mas não os valores pregados pelo partido no poder, o ultranacionalista Lei e Justiça.

    Desde o início deste século, o poder público participa ativamente da divulgação da cultura polonesa pelo mundo ""inclusive com uma entidade voltada à divulgação da "marca" Polônia e à promoção do intercâmbio artístico internacional, o Instituto Adam Mickiewicz.

    Os governos fortaleceram a infraestrutura cultural, com a construção e a recuperação de museus, galerias e teatros, e apoiaram artistas, principalmente depois da entrada do país na Comunidade Europeia, em 2004.

    A atual gestão, no entanto, não parece tão entusiasmada com essa internacionalização. A elite artístico-cultural responde, tentando entender e, em muitos casos, subverter os valores conservadores da "Polônia profunda".

    Eis o mote para a exibição "A Formosa Sereia é Vosso Cume", no Museu de Arte Moderna de Varsóvia, que inaugurou há pouco seu novo prédio, às margens do rio Vístula. "É um museu nômade", diz Marcel Andino Velez, vice-diretor da instituição.

    Até o mês passado, o museu funcionava em uma antiga loja de móveis. No final de março, o novo prédio, um enorme retângulo branco desenhado pelo austríaco Adolf Krischanitz, foi transportado de Berlim para a capital polonesa, onde ficará por quatro anos.

    O tema da exposição, em cartaz até junho, acena para uma figura cara à cidade. A sereia empunhando uma espada é o símbolo (e a protetora) de Varsóvia. A mostra inclui desde pinturas acadêmicas do ser mitológico até "sereios" da arte "queer" polonesa. Além de artistas do país, há nomes internacionais. Estão lá desenhos da sereia brandindo um martelo no lugar da espada, de Picasso (1881-1973), e a obra "Semeando Sereias", do brasileiro Tunga (1952-2016).

    POLONIDADE

    Ainda mais explícita em seu título é a mostra do Centro de Arte Contemporânea do Castelo Ujazdowski: "Polonidade Tardia "" Formas de Identidade Nacional depois de 1989".

    Uma curiosidade para brasileiros são as fotos das performances do artista Pawel Althamer vestido com uma cabeça de bode, feitas em Brasília. Althamer está fantasiado de "Billy Goat", famoso personagem de histórias infantis polonesas constantemente em trânsito na busca de uma cidade ideal imaginária.

    MALDIÇÃO

    No teatro, a peça mais falada em Varsóvia (e em todo o país) é "Klatwa" (maldição), do diretor croata Oliver Frljic. Baseada em um romance polonês do século 19 sobre uma aldeã que tem dois filhos com o pároco local, a montagem trata de pedofilia na igreja, aborto, feminismo e islamofobia.

    No palco, um cachorro contracena com atores ("para farejar os muçulmanos na plateia", explica um ator). Desde março de 2016, a Polônia fechou suas fronteiras para a entrada de imigrantes do Oriente Médio. A provocação não para por aí. A horas tantas da peça, uma estátua de João Paulo 2º se vê envolvida numa simulação de sexo oral.

    Após um trecho da montagem circular na internet, a direita católica, apoiadora do atual governo, organizou manifestações pedindo o cancelamento das apresentações. "Kl?twa" continua em cartaz, e a onda de protestos teve efeito: os ingressos estão esgotados pelos próximos seis meses.

    NOVAS DIRETORAS

    Nem só de escândalos vive o teatro polonês. Há uma leva de mulheres na direção teatral fazendo sucesso localmente e em festivais europeus com peças menos polêmicas, mas de alta qualidade. Um desses nomes, Anna Karasi?ska, estreou em abril "The Fantasia", no teatro Warszawa.

    Na peça, a diretora dá ordens em "off" aos atores para que encarnem diferentes clichês comportamentais: o homem que tem vergonha de dançar em público, a moça que dança como uma louca envergonhando os amigos.

    Em certo momento, os atores são instruídos a fazer papel de árvore, para serem abraçados pela atriz representando a pessoa "gratidão". Lembra o dispositivo cênico de algumas montagens da brasileira Christiane Jatahy.

    OLHAR BRASILEIRO

    Parte da reflexão sobre a identidade polonesa vem para o Brasil, em forma de livro. "Traços de Gente", com fotos do brasileiro Cristiano Mascaro e textos sobre a experiência do artista visual polonês Slawomir Rumiak, será lançado no próximo dia 9, no Instituto Tomie Othake.

    Com curadoria do alemão Stephan Stroux, a obra retrata os espaços públicos sem gente (em Varsóvia, Cracóvia, Gda?sk e Lodz, na Polônia) e as pessoas invisíveis nos espaços públicos em São Paulo.

    IARA BIDERMAN, 56, é jornalista

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024