• Ilustríssima

    Friday, 03-May-2024 10:55:32 -03

    Arquivo aberto: Aulas de latim com o professor Belchior

    JOSELY TEIXEIRA CARLOS

    07/05/2017 02h00

    Estávamos em 2001, e, ao contrário do que muitos de nós temíamos, o mundo não tinha acabado. Eu, já no terceiro ano da Faculdade de Letras da UFC (Universidade Federal do Ceará), em meio a matérias de linguística e literatura, tinha descoberto e me apaixonado pelo latim. Sim, latim, disciplina amada por poucos e odiada pela maioria.

    Estava no segundo semestre do curso, frequentando as aulas da matéria língua latina 2, mas com um problema (grande) a resolver. Eu ainda não tinha uma gramática! Melhor dizendo, eu não tinha a "Gramática de Latim", do Napoleão Mendes de Almeida, aquele livro fundamental para as aulas, lindo, com encadernação azul.

    Até ali, vinha me virando com as fotocópias dos conteúdos de cada aula e com as gramáticas da biblioteca do centro de humanidades. O problema, porém, continuava. Eram dois, na verdade. Com a grana curta, nem sempre conseguia tirar xerox da lição do dia; além disso, eu não poderia fazer anotações no Napoleão da biblioteca (tenho o costume de escrever nos livros).

    O semestre corria. À medida que eu estudava os casos e as declinações da língua e fazia intermináveis exercícios de tradução e versão com os nominativos, vocativos, genitivos, dativos, ablativos e acusativos (ufa!), muitas vezes entre um trabalho e outro nos estúdios de rádio, eu compartilhava todo o encantamento pelo latim com Belchior. Nós havíamos nos conhecido anos antes, em um show dele, e mantínhamos contato quando de suas idas a Fortaleza.

    É, Belchior não era apenas um rapaz latino-americano vindo do interior. O cantor de letras extensas, voz bob-dylaniana e vasto bigode também era conhecedor de latim. Foi nessa época que descobri que os conhecimentos de ex-seminarista e quase médico do autor de "Como Nossos Pais" continuavam mais fortes do que nunca.

    "Sapientia poetarum patriæ gloria erit. Poetarum sapientiam amamus." ("A sabedoria dos poetas será a glória da pátria. Amamos a sabedoria dos poetas"). Quando eu tinha alguma dúvida (várias) e comentava com ele, lá vinha Belchior com seu tom professoral (que aprendeu talvez quando era professor de biologia nos cursinhos de Fortaleza) e esclarecia tudo com didática admirável. Ele adorava traduzir. A essa altura, me contou que estava fazendo havia algum tempo a tradução para o português, em linguagem popular, da "Divina Comédia", de Dante Alighieri. A obra seria ilustrada pelo próprio cantor.

    Algumas vezes, nesses encontros com Belchior em Fortaleza –que, em geral, aconteciam na hora do almoço ou da janta–, eu segurava com uma mão os talheres e com a outra aproveitava para fazer os deveres de casa do latim, com o auxílio luxuoso do professor Belchior. Ele, entre uma garfada e outra, aproveitava para fazer seus desenhos do clássico do escritor italiano. Ainda bem que não tínhamos smartphone naquela época.

    Foi numa dessas visitas a Fortaleza –assim anunciada ao telefone: "Josy, estou aqui na cidade maravilhosa"– que Belchior chegou com o mesmo sorriso de sempre, mas também com um grande pacote na mão. "É pra você!"

    Ao ver o envelope pardo ("presente embrulhado por ele mesmo?", pensei), fiquei ansiosa, porque não fazia ideia do que poderia ser. Abrindo o embrulho, eis que surge aquele objeto azul-piscina: a tão querida gramática do filólogo e professor Napoleão, novinha.

    Tinha algo mais: Belchior me deu também o seu próprio exemplar da edição portuguesa da "Gramática Latina" (bem amarelada), de Antonio Freire. "Discipulus diligens est. Libri discipulorum pulchri sunt." ("O aluno é aplicado. Os livros dos alunos são bonitos").

    Agradeci pela gentileza, em português mesmo. A partir dali, não precisava mais tirar xerox ou disputar com meus colegas os poucos livros da biblioteca da UFC.

    Depois de folhear minhas duas gramáticas, fomos conversar e brindar. Não é todo dia que se recebe um presente de um ídolo da música brasileira. "In vino veritas!" ("A verdade está no vinho!")

    JOSELY TEIXEIRA CARLOS, 36, é professora de linguística e pesquisadora da USP

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024