• Ilustríssima

    Sunday, 05-May-2024 14:54:42 -03

    Jonathan Safran Foer volta ao romance após hiato de 11 anos; leia trecho

    JONATHAN SAFRAN FOER
    tradução DANIEL PELLIZZARI e MAÍRA MENDES GALVÃO

    07/05/2017 02h00

    Sebastian Lucrécio
    Jonathan Safran Foer
    O escritor americano Jonathan Safran Foer

    SOBRE O TEXTO Este trecho foi retirado do capítulo "Absorver ou Absolver", de "Aqui Estou". A obra marca a volta ao romance do escritor americano Jonathan Safran Foer, um dos mais proeminentes de sua geração, após um hiato de 11 anos. O livro conta a história de uma família judia de classe média alta vivendo em Washington quando um terremoto de grandes proporções atinge Israel. O lançamento, da editora Rocco, estará disponível a partir de 22/5.

    *

    Isaac deveria estar em estado avançado de decomposição dentro da terra, mas ainda continuava fresco dentro da gaveta de uma geladeira em Bethesda. Apenas para Isaac o fim do tormento poderia significar a extensão do tormento. Seu último desejo – declarado tanto no testamento quanto em inúmeras conversas com Irv, Jacob e quem mais estivesse envolvido com a tarefa – era ser enterrado em Israel.

    – Mas por quê? – Jacob tinha perguntado.

    – Porque é para onde vão os judeus.

    – Na folga de Natal. Não para a eternidade.

    E quando Sam, que estava acompanhando, apontou que por lá ele receberia muito menos visitantes, Isaac apontou que "os mortos estão mortos" e visitas são a última coisa que passam por suas cabeças com cérebros mortos.

    – Você não quer ser enterrado com a vovó e o resto da família? –Jacob quis saber.

    – Vamos todos nos reencontrar quando chegar a hora.

    – Mas qual o sentido disso? – Jacob não perguntou, porque algumas vezes fazer sentido não faz muito sentido. Um último desejo é uma dessas vezes. Isaac tinha providenciado o lote duas décadas antes (mesmo na época foi caro, mas ele não se importava em ter uma sepultura pobre), então tudo que era necessário para realizar seu último e mais duradouro desejo era colocar seu corpo dentro de um avião e pensar na logística do outro lado.

    Mas quando chegou a hora de colocar o corpo de Isaac na caixa de correio, a logística era impossível: todos os voos estavam proibidos de decolar, e quando o espaço aéreo foi reaberto, os únicos corpos com entrada permitida pelo país eram os que estavam dispostos a morrer.

    Assim que terminou a janela de tempo ritualística para o enterro-em-um-dia, não havia mais grande pressa em descobrir uma solução. Mas isso não significa que a família era indiferente ao ritual judaico. Alguém precisava estar com o corpo durante todo o intervalo entre a morte e o enterro. A sinagoga tinha uma equipe para isso, mas, enquanto os dias foram passando, o entusiasmo por servir de babá para o cadáver foi diminuindo, e cada vez mais a responsabilidade foi transferida para os Bloch. E essa responsabilidade precisava ser negociada com a responsabilidade de ser hospitaleiro com os israelenses: Irv poderia levá-los até Georgetown, enquanto Jacob ficava sentado ao lado do corpo de Isaac e em seguida, à tarde, Jacob poderia leválos ao Museu Aeroespacial para assistir a Voar! Na tela IMAX, engolidora de perspectiva, enquanto Deborah teria a experiência exatamente oposta com o corpo de Isaac. O patriarca com quem falavam sete minutos por semana via Skype a muito custo tinha se tornado alguém que visitavam diariamente. Por alguma singular magia judaica, a transição de vivo para morto transformava os perpetuamente ignorados em jamais esquecidos.

    Jacob aceitou ficar com a carga mais pesada, pois se considerava o mais apto, e também por ser quem mais desejava fugir de outras responsabilidades. Servia como acompanhante de shemirá – uma expressão da qual nunca tinha ouvido falar antes de se tornar um coreógrafo de acompanhantes de shemirá – pelo menos uma vez por dia, em geral por várias horas seguidas. Nos primeiros três dias, o corpo foi mantido em cima de uma mesa, debaixo de um lençol, na funerária judaica. Depois foi transferido para um espaço secundário nos fundos, e por último, ao final da semana, até Bethesda, para onde corpos não enterrados vão morrer. Jacob nunca ficou a menos de três metros de distância e aumentava o volume dos podcasts a um nível destruidor de capacidades auditivas, e tentava não respirar pelo nariz. Levava livros, respondia e-mails (precisava ficar do outro lado da porta para conseguir sinal), chegou até a escrever um pouco: COMO ENCENAR DISTRAÇÃO; COMO ENCENAR FANTASMAS; COMO ENCENAR LEMBRANÇAS SENTIDAS E INCOMUNICÁVEIS.

    Domingo, no meio da manhã, quando as reclamações ritualizadas de Max sobre não ter nada para fazer se tornaram exasperantes a um nível intolerável, Jacob sugeriu que Max participasse do acompanhamento de shemirá, pensando Isso vai fazer você sentir gratidão pelo tédio que sente. Aceitando o blefe, Max concordou.

    Foram saudados na porta pela acompanhante de shemirá anterior – uma mulher do shul, muito idosa, que inspirava tantos calafrios e evocava tanta ausência que poderia ter sido confundida com um dos mortos se a maquiagem exagerada não desse a pista: apenas judeus vivos são embalsamados. Trocaram acenos de cabeça, ela deu as chaves da porta de entrada a Jacob lembrando que absolutamente nada além de papel higiênico (e número dois, claro) poderia entrar na privada e, com um pouco menos de pompa e circunstância do que no Palácio de Buckingham, a troca de guarda se efetivou.

    – Que cheiro horrível – Max comentou, sentando diante da mesa comprida da recepção, feita de madeira de carvalho.

    – Quando preciso respirar, faço isso pela boca.

    – Parece que alguém peidou dentro de uma garrafa de vodca.

    – Como você conhece cheiro de vodca?

    – Vovô me fez cheirar.

    – Por quê?

    – Pra provar que era cara.

    – O preço não seria suficiente?

    – Pergunta isso pra ele.

    – Mascar chiclete também ajuda.

    – Você tem chiclete?

    – Acho que não.

    Aqui Estou
    Jonathan Safran Foer
    l
    Comprar

    Em seguida, conversaram sobre Bryce Harper e sobre por que, apesar de o gênero estar tão cansado que era incapaz de erguer um dedo de originalidade, filmes de super-heróis ainda eram bem legais, e como costumava acontecer, Max pediu ao pai que contasse mais uma vez histórias sobre Argos.

    JONATHAN SAFRAN FOER, 40, é escritor americano. Assinou romances como "Tudo se Ilumina" (2002) e "Extremamente Alto e Incrivelmente Perto" (2005)

    DANIEL PELLIZZARI, 43, é tradutor e autor de "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido" (Companhia das Letras)

    MAÍRA MENDES GALVÃO, 36, é tradutora, poeta e editora no Brasil para a revista "Asymptote"

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024