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    A tempestade dos encontros

    MATTEO BONFITTO

    14/05/2017 02h02

    Verona, 1991

    "Pôr do sol silencioso... Lentamente, sons pouco familiares se tornam mais e mais perceptíveis... Suas vibrações produzem a visualização de imagens sobrepostas. Pode-se sentir o aroma de diferentes tipos de flores... Observo as ações que acontecem em meu campo de visão, elas deslizam suavemente sobre uma superfície coberta de areia... Os músicos param de tocar. Só agora me dei conta que anoiteceu..."

    Essas são memórias fragmentadas de uma experiência inesquecível, registradas em um pequeno caderno de anotações: a apresentação de "A Tempestade", de William Shakespeare, dirigida por Peter Brook, no Giardino Giusti, em Verona (Itália), em 1991.

    Inesquecível por várias razões. Antes de tudo, porque essa foi uma experiência que gerou muitos desdobramentos em meu percurso como artista e como pesquisador.

    Desses desdobramentos, um foi particularmente importante: os encontros de trabalho que aconteceram em Paris e imediações alguns anos mais tarde com três atores da trupe de Brook: Yoshi Oida, Sotigui Kouyaté e Tapa Sudana, os dois últimos integrantes do elenco do espetáculo de Verona.

    Acervo Pessoal
    Os atores Matteo Bonfitto e Tapa Sudana em Paris, em 2006
    Os atores Matteo Bonfitto e Tapa Sudana em Paris, em 2006

    Os encontros com eles, que envolveram conversas em diferentes contextos e workshops práticos, me fizeram perceber qualidades que os conectavam. Os três tiveram suas formações como atores em culturas não ocidentais: Oida é japonês, Sotigui, morto há alguns anos, era malinês, e Sudana, balinês. Essa condição havia criado um elo entre eles.

    Apesar das diferenças, essas três culturas teatrais envolvem uma noção de atuação que vai muito além da demonstração de habilidades e de talento natural; o atuar nesses casos funciona como uma dimensão que conecta o ator com algo que o ultrapassa, que vai além de suas experiências pessoais. O ator, assim, passa a ser não alguém que simplesmente entretém e diverte, mas um canal instaurador de experiências.

    Lembro com detalhes dos encontros que aconteceram com cada um deles. Com Oida, cada prática proposta por ele era minuciosamente examinada, como se o processo de detalhamento fosse uma centelha que se torna mais e mais viva, até se transformar em chama e em fogo.

    No caso de Sotigui, tive o privilégio de sentar à mesa com sua família. Ele frequentemente pedia a um de seus filhos que me mostrasse um certo canto ou dança da tradição griot. Havia uma relação fluida entre arte e vida, que não precisava de palco para acontecer.

    Já com Sudana, o trabalho foi além dos espaços fechados para se conectar com vários ambientes e lugares públicos. Observá-lo trabalhar com o bastão no jardim próximo à sua casa, por exemplo, era como testemunhar uma transformação particular, em que um corpo e um objeto em ação provocam um efeito mágico.

    Para os três, ser ator não foi só uma escolha profissional, mas um modo de vida, que muitas vezes implicou não estar no foco de atenção, não estar literalmente em cena.

    Ver o trabalho do artista, nesse caso, do ator, como um modo de vida é algo supostamente já conhecido, mesmo no Ocidente, mas com eles o nível em que isso acontece, ou acontecia no caso de Sotigui, toca uma dimensão particular, cuja transmissão deve ser necessariamente direta, não sendo possível uma descrição que dê conta de todas as camadas.

    Esses encontros, que se deram em momentos diferentes entre 2003 e 2007, me fizeram sempre relembrar o espetáculo visto em Verona, em que, ao final, apenas uma certeza permanecia: a de que era impossível naquele momento falar sobre aquela experiência. Qualquer tentativa de verbalização poderia levar a uma perda de algo precioso, riscava dissolvê-la.

    Diretores como Brook e Grotowski se referem ao teatro como a "arte do encontro". Há encontros e encontros, diferentes entre si.

    O encontro do Giardino Giusti ampliou horizontes. Fui atravessado por algo que me fez reconhecer, uma vez mais, a potência transformadora do teatro e das artes. Já os encontros ocorridos mais tarde foram geradores de muitos questionamentos sobre pressupostos de vida, de convivência, de criação e de compartilhamento.

    Os encontros com Oida, Sotigui e Sudana foram intempestivos, difíceis em muitos momentos, pois falo de contatos diretos que não reforçam o que já se acredita saber e conhecer, mas destilam a atenção para os muitos pontos cegos que permeiam nosso existir e que norteiam, desde então, minhas práticas, artísticas e não artísticas.

    Encontros significativos podem adquirir essa qualidade: a de serem tempestades sutis.

    MATTEO BONFITTO, 54, é ator, performer, diretor e professor livre-docente do departamento de artes cênicas da Unicamp.

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