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    Thursday, 02-May-2024 08:39:35 -03

    A obsessão de uma mulher por uma caveira; um conto argentino

    MARIANA ENRIQUEZ
    tradução JOSÉ GERALDO COUTO
    ilustração LOVELOVE6

    21/05/2017 02h08

    SOBRE O TEXTO Este é um dos 12 contos que fazem parte da antologia "As Coisas que Perdemos no Fogo", que a Intrínseca lança em 29/5.

    Lovelove6

    Eu a avistei quando estava a ponto de atravessar a avenida. Estava no meio de um monte de lixo, abandonada em cima das raízes de uma árvore. Os estudantes de odontologia, pensei, essa gente desalmada e estúpida, essa gente que só pensa no dinheiro, encharcada de mau gosto e sadismo. Levantei-a com as duas mãos, temendo que se desmanchasse. À caveira faltavam a mandíbula e a totalidade dos dentes, mutilação que me confirmou a ação dos protodentistas. Vasculhei ao redor da árvore, entre os resíduos. Não encontrei a dentadura. Que pena, pensei, e fui até meu apartamento, a apenas 200 metros, com a caveira entre as mãos, como se caminhasse para uma cerimônia pagã no bosque.

    Depositei-a na mesa da sala de estar. Era pequena. A caveira de uma criança? Não sei nada sobre anatomia e assuntos ósseos. Por exemplo: não entendo por que as caveiras não têm nariz. Quando toco meu rosto, sinto o nariz grudado no crânio. Por acaso o nariz é uma cartilagem? Acho que não, embora seja verdade que dizem que não dói quando se quebra e que se quebra com facilidade, como se fosse um osso frágil. Examinei a caveira um pouco mais e encontrei um nome escrito. E um número. "Tati, 1975." Quantas opções. Podia ser seu nome, Tati, nascida em 1975. Ou sua dona podia ser uma Tati nascida em 1975. Ou o número talvez não fosse uma data e tivesse a ver com alguma classificação. Por respeito, decidi batizá-la com o genérico Caveira. À noite, quando meu namorado voltou do trabalho, já era somente Vera.

    Ele, meu namorado, não a viu até tirar a jaqueta e se sentar na poltrona. É um homem muito desatento.

    Quando a notou, teve um sobressalto, mas não se levantou. Também é preguiçoso e está ficando gordo. Não gosto de gordos.

    – O que é isso? É de verdade?

    – Claro que é de verdade –respondi. – Encontrei na rua. É uma caveira.

    Gritou comigo. Por que você trouxe isto, bradou, exagerado, de onde a tirou. Julguei que estava fazendo um escândalo e ordenei que baixasse a voz. Tentei explicar com calma que a encontrara jogada na rua, embaixo de uma árvore, abandonada, e que teria sido totalmente indecente de minha parte agir com indiferença e deixá-la ali.

    – Você está louca.

    – Pode ser –respondi, e levei Vera para o quarto.

    Sei que ele esperou um tempo para ver se eu saía para fazer a comida dele. Não tem que comer mais, está ficando gordo, as coxas já roçam uma na outra, e se ele usasse saia estaria sempre com assaduras entre as pernas. Depois de uma hora, o ouvi me insultar e usar o telefone para pedir uma pizza. A preguiça: prefere pedir comida em casa a caminhar até o centro e comer num restaurante. O gasto de dinheiro é quase o mesmo.

    – Vera, não sei o que fazer com ele.

    Se ela pudesse falar, sei que me diria para largá-lo. É uma questão de bom senso. Antes de dormir, borrifo a cama com meu perfume favorito e passo um pouquinho em Vera embaixo dos olhos e nas têmporas.

    Amanhã vou comprar uma peruquinha para ela. Para que meu namorado não entre no quarto, fecho a porta com chave.

    Meu namorado diz que está assustado e outras besteiras. Dorme na sala, mas não é um sacrifício, porque o futon que comprei com meu dinheiro –ele ganha pouco– é de excelente qualidade. Está assustado com quê, pergunto. Ele balbucia bobagens sobre o fato de eu me trancar com Vera e diz que me escuta falando com ela.

    Peço-lhe que vá embora, que junte suas coisas e saia do apartamento, que me deixe. Faz cara de profunda dor, não acredito nele e quase o empurro quarto adentro para que faça as malas. Grita de volta, mas desta vez de medo. É que avistou Verinha, com sua peruca loura caríssima de cabelo natural, fino e amarelo, sem dúvida cortado num vilarejo soviético da Ucrânia ou da estepe (as siberianas são louras?), as tranças de alguma garota que ainda não encontrou quem a tire de seu povoado miserável. Parece-me muito estranho que existam louros pobres, por isso a comprei. Também comprei para ela uns colares de contas coloridas, muito festivos. E está rodeada de velas aromáticas, dessas que as mulheres que não são como eu põem no banheiro ou no quarto para esperar algum homem entre pequenas chamas e pétalas de rosa.

    Ameaçou telefonar para minha mãe. Eu disse que ele podia fazer o que quisesse. Achei-o mais gordo do que nunca, com as bochechas caídas como as de um mastim napolitano, e naquela noite, depois que ele foi embora com a mala e uma bolsa pendurada no ombro, decidi começar a comer pouco, bem pouco. Pensei em corpos belos como o de Vera, se estivesse completo: ossos brancos que brilham sob a lua em tumbas esquecidas, ossos magros que quando se batem soam como sininhos de festa, danças na floresta, bailes da morte. Ele não tem nada a ver com a beleza etérea dos ossos nus, ele os tem cobertos por camadas de gordura e aborrecimento. Vera e eu vamos ser belas e leves, noturnas e terrestres; belas crostas de terra sobre os ossos. Esqueletos ocos e bailarinos. Nada de carne sobre nós.

    Uma semana depois de parar de comer, meu corpo muda. Quando levanto os braços, as costelas aparecem, ainda que não muito. Sonho: algum dia, quando me sentar neste piso de madeira, terei ossos em vez de nádegas, e os ossos vão atravessar a carne e vão deixar rastros de sangue no chão, vão cortar a pele por dentro.

    Comprei para Vera umas luzes de decoração, as que se usam para enfeitar a árvore de Natal. Não podia continuar vendo-a sem olhos ou, melhor dizendo, com os olhos mortos, de modo que decidi que dentro das órbitas vazias brilhariam duas lampadinhas; como são coloridas, podem ser trocadas, e Vera um dia terá olhos vermelhos, outro dia verdes, outro dia azuis. Quando estava contemplando da cama o efeito de Vera com olhos, ouvi que uma chave abria a porta do meu apartamento. Minha mãe, a única que tem cópia, porque obriguei meu ex obeso a entregar a dele. Levantei-me para recebê-la. Preparei um chá e me sentei para tomar com ela. Está mais magra, afirmou. É o estresse da separação, respondi. Ficamos caladas. Por fim, ela falou:

    – Patricio me disse que você está fazendo algo estranho.

    – O quê? Faça-me o favor, mamãe, ele inventa coisas porque o dispensei.

    – Diz que você está obcecada por uma caveira.

    Eu ri.

    – Ele está louco. Eu e umas amigas estamos arrumando fantasias e maquetes de terror para o Dia das Bruxas, é para nos divertirmos. Não tive tempo de comprar uma fantasia, por isso armei um altar vodu e vou comprar outras coisinhas para ambientar, entende? Porque vamos fazer a festa aqui em casa.

    Não sei se entendeu muito, mas lhe pareceu uma estupidez razoável. Ela quis conhecer Vera e eu lhe mostrei. Achou macabro que eu a mantivesse dentro do quarto, mas acreditou por completo na história da ambientação para a festa, apesar de eu jamais ter organizado uma festa na vida e detestar aniversários. Também acreditou em minhas mentiras sobre o despeito de Patricio.

    Foi embora tranquila e não vai voltar por um tempo. Tudo muito bem, quero ficar sozinha porque agora me angustia a incompletude de Vera. Não pode continuar sem dentes, sem braços, sem coluna vertebral. Nunca vou poder recuperar os ossos que correspondem a ela, isso é óbvio. Tenho que estudar anatomia, além do mais, para averiguar o nome e o aspecto dos ossos que faltam, que são todos. E onde buscá-los? Não posso profanar túmulos, não saberia como fazê-lo. Meu pai costumava falar dessas valas comuns dos cemitérios, que ficavam ao ar livre como uma piscina de ossos, mas acho que não existem mais. Se ainda existem, será que não estão protegidas e vigiadas? Ele me dizia que os estudantes de medicina iam buscar ali seus esqueletos, os que usavam para estudar. De onde tiram, agora, os ossos para estudar? Ou será que usam réplicas de plástico? Imagino que seja muito difícil caminhar pelas ruas com costelas humanas. Se encontrar algumas, usarei a mochila grande que Patricio deixou para carregá-las, a que usávamos para acampar quando ele ainda era magro. Todos caminhamos sobre ossos, é uma questão de fazer buracos profundos e alcançar os mortos encobertos. Tenho que cavar, com uma pá, com as mãos, como os cães, que sempre encontram os ossos, que sempre sabem onde os esconderam, onde os deixaram esquecidos.

    MARIANA ENRIQUEZ, 43, jornalista argentina do jornal "Página/12", é também professora.

    JOSÉ GERALDO COUTO, 60, é jornalista, crítico de cinema e tradutor. Assina coluna no blog do Instituto Moreira Salles.

    LOVELOVE6, 27, autora de "Garota Siririca" (garotasiririca.com), escreve histórias em quadrinhos, publicando em formato impresso e digital desde 2013.

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