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    O encontro da escritora Conceição Evaristo com a ativista Angela Davis

    CONCEIÇÃO EVARISTO

    11/06/2017 02h03

    Brasília, 2014

    Arquivo pessoal
    Conceição Evaristo e Angela Davis em Brasilia em 2014
    Conceição Evaristo e Angela Davis em Brasilia em 2014

    Vem de longa data a certeza, em minha mente, de que "Black is power and beautiful". Para ser mais exata, desde a minha juventude, ainda nos anos 1970.

    Na época, fui ganhando coragem e certeza para enfrentar os deboches dos estranhos e a censura das pessoas mais próximas, ao me livrar do sacrifício do alisamento capilar. As meninas e jovens negras em tempos passados não dispunham de nenhuma indústria de cuidados específicos para nossas peles e cabelos. Seguíamos então com nossas belezas modificadas, no sacrifício do "ferro quente", de alisar os cachos.

    Conheci bem esse ingrato e doloroso tempo, que ainda não se desfez por completo. Foi então que me surgiu Angela Davis, com sua vasta cabeleira, símbolo de sua beleza e coragem.

    Não lembro como tomei conhecimento da existência dessa ativa participante dos Panteras Negras e da luta dos negros estadunidenses pelos direitos civis. Eu, uma jovem negra, moradora de uma favela belo-horizontina, tinha a militante afro-americana como "ídala".

    Meu engajamento, até então, se dera em grupo de orientação católica, a Juventude Operária Católica, nos anos 1960. As discussões oferecidas se construíam a partir do enfoque da luta de classes, nunca das questões raciais ou de gênero. Mais tarde, por força da repressão, esses movimentos de base da igreja foram dissolvidos.

    Não foi na ambiência católica que descobri a minha guru. Creio que recebi as primeiras informações sobre as lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA de meu tio Oswaldo Catarino Evaristo. Penso que foi ele, também, que me falou de Luther King, Malcolm X e dos africanos Patrice Lumumba e Nelson Mandela, além da cantora Miriam Makeba.

    Frequentei ainda o grupo Movimento do Negro Brasileiro, em Belo Horizonte. O encontro acontecia na casa do coronel Antônio Carlos Pimenta, único coronel negro que conhecíamos naquele tempo. Assim foi se afirmando a minha consciência como jovem negra.

    Lembro que, nas paredes caiadas de branco de meu pequeno quarto na casa de minha tia Lilia, rostos e gestos dessas pessoas se sobressaíam. Quando eu contemplava a imagem de Angela Davis, o enorme black power, o punho cerrado para cima, me fortalecia na audácia e na verdade daqueles gestos. Fui assumindo a coroa armada de meu cabelo.

    Fortalecida, tomei o caminho do Rio de Janeiro. Só e sem nada. Acompanhada e com tudo. Inspirada em Angela Davis, levava o passaporte de minha "dignidade negra" (expressão que tomo do poeta Nei Lopes).

    Como o tempo é circular, depois de tantas vindas de Angela Davis ao Brasil, conheci pessoalmente em 2014 essa contemporânea que tanto me inspirou e inspira. Em Brasília, quando ela proferiu a conferência "Feminismo Negro e as Lutas Mundiais por Equidade", tive a oportunidade de presenteá-la com a versão em língua inglesa do meu romance "Ponciá Vicêncio".

    Pude também confidenciar a minha admiração desde sempre por ela. Confidência que foi feita muito mais por gestos do que por palavras. Meus conhecimentos do inglês são apenas rudimentares. Enquanto uma amiga traduzia parte de meus sentimentos por estar frente a frente com a maior influenciadora ideológica de minha juventude, eu me perdia na contemplação do rosto dela.

    Percebia a atenção com que ela ouvia a minha fala e a de nossa intérprete, que apontava o meu cabelo, ainda black power, apenas amarrado, e que é uma lembrança de nossa juventude.

    A juventude aguerrida de Angela Davis desfilava diante de mim. O compromisso de sua luta ao longo do tempo pela dignidade, pela liberdade dos afro-americanos, notadamente pelas mulheres, construía em minha mente um discurso que eu não conseguia dizer.

    A minha quase mudez era um efeito muito mais da emoção que eu experimentava diante dela do que de qualquer barreira linguística. Quando ela acolheu o desejo de meu abraço e o pedido de uma foto a seu lado, só consegui dizer bem baixinho "muito obrigada, my sister".

    Salve, Angela Davis.

    CONCEIÇÃO EVARISTO, 70, escritora, é tema de exposição no Itaú Cultural, em São Paulo, em cartaz até 18/6.

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